Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente

Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente
RIDCA - Edición Nº3 - Derecho del Trabajo

15 de julio de 2023

Trabalho decente e o imigrante na indústria têxtil: A responsabilidade do empregador no dano existencial.
El trabajo decente y el inmigrante en la industria textil: La responsabilidad del empleador por el daño existencial

Autores. José Claudio Monteiro de Brito Filho y Juliana Marques dos Santos Costa. Brasil

José Claudio Monteiro de Brito Filho[1]

Juliana Marques dos Santos Costa[2]

 

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar, sob a ótica do trabalho decente, o trabalho do imigrante na indústria têxtil no Brasil, com destaque para a caracterização do dano existencial decorrente das jornadas exaustiva exercidas e a possibilidade de responsabilização do empregador. O problema tem origem na constatação, através dos dados obtidos, das precárias condições de trabalho deste sujeito de diretos, para então lançar reflexões sobre o conceito de trabalho digno e obter conclusões sobre a responsabilização do empregador pela submissão deste trabalhador a condições degradantes e situação de  hipervulnerabilidade. Para tanto, utiliza-se o método hipotético-dedutivo, com uma análise documental e bibliográfica e uma abordagem qualitativa do tema.

Palavras-chaves:  Trabalho decente; Dano existencial; Refugiados; Industria têxtil.

 

ABSTRACT

 

This article aims to analyze, from the perspective of decent work, the work of immigrants in the textile industry in Brazil, with emphasis on the characterization of existential damage resulting from the exhaustive workdays and the possibility of employer liability. The problem originates in the verification, through the data obtained, of the precarious working conditions of this subject of rights, to then launch reflections on the concept of decent work and obtain conclusions about the employer’s liability for the submission of this worker to degrading conditions and situation of hypervulnerability. To do so, the hypothetical-deductive method is used, with a documental and bibliographical analysis and a qualitative approach to the theme.

Keywords: Decent Work; Existential Damage; Refugees; Textile Industry.

 

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

O trabalho tornou-se um valor fundamental na sociedade contemporânea e uma das maiores fontes de uma vida digna, pois garante a contraprestação de cunho pecuniário essencial para a efetivação de outros direitos fundamentais como alimentação, saúde e lazer, consagrados constitucionalmente.

No entanto, o cenário da indústria têxtil no Brasil nos apresenta uma realidade preocupante e urgente. De acordo com dados retirados de estudos e fiscalizações realizadas pelo MPT no Estado de São Paulo, no âmbito desta atividade, observou-se que os trabalhadores brasileiros possuem carteira assinada em 31% dos casos, enquanto esse percentual é de apenas 7% entre os refugiados e imigrantes. Neste último grupo, a maioria (51,2%) atua de maneira autônoma, sem vínculo formal. 

A precariedade em que se veem imigrantes e refugiados fica ainda mais clara pela jornada de trabalho: cerca de 44% delas trabalham mais de 12h por dia, contra 2% de trabalhadores brasileiros que realizam a mesma carga horária. Mesmo assim, a situação destas últimas não é muito melhor: 45% trabalham entre 9 e 11h por dia, realizando horas extras como regra (MPT/SP, 2022).

Mas afinal, como a precarização e a pobreza se vincula à indústria da moda? A indústria da moda é notória por seus salários baixos, o que ampara a perpetuação da pobreza. O salário-mínimo ideal na maioria dos países inseridos na cadeia de produção têxtil raramente é suficiente para que os trabalhadores consigam suprir suas necessidades básicas e, geralmente, exige um mínimo de 48 horas/semanas trabalhados (Oxfam Austrália, 2019). Ou seja, longas jornadas de trabalho para um valor que não supre as necessidades básicas de alimentação, serviços básicos, moradia, saúde, educação, vestuário, transporte.

Por isso, é importante, sob o aspecto científico, analisar a atual noção de trabalho decente, compreendida como o arcabouço de direito mínimo à dignidade de todas as pessoas que exercem atividades laborais (BRITO FILHO, 2018).

Estabelecidas tais premissas, será possível responder a seguinte indagação: sob a ótica de trabalho decente, qual a responsabilidade do empregador pelo dano existencial ocasionado ao trabalhador imigrante na indústria têxtil, e garantindo um trabalho decente?

Para atingir o fim almejado, o presente artigo é estruturado em em seis itens, sendo o primeiro esta introdução; o segundo analisa os parâmetros do trabalho decente; o terceiro a apresenta o cenário de precarização das condições de trabalho do imigrante na indústria têxtil; o quarto aborda a ocorrência de dano existencial nas relações laborais dos imigrantes no Brasil, o quinto a possibilidade de responsabilização do empregador pelo dano existencial. Por fim, sexto item apresenta as considerações finais deste estudo.

Por meio do método de abordagem dedutivo, a investigação será realizada a partir da de técnica de pesquisa teórica, bibliográfica e documental, em livros, periódicos e artigos científicos que tratam do assunto.

 

  1. O TRABALHO DECENTE: DIREITOS MÍNIMOS PARA GARANTIA DA DIGNIDADE NO CAMPO LABORAL

No plano jurídico, a CRFB/88 estabelece quais devem ser os valores e princípios norteadores da elaboração e aplicação das demais normas, assim como da atuação dos agentes públicos e membros da coletividade. A Carta Maior funciona como um parâmetro para verificar a conformidade ou não de leis e atos jurídicos (RODRIGUES, 2011).

Dentre as diretrizes estabelecidas, a CRFB/88 preceitua, no título I, os princípios fundamentais que devem reger o Estado, de modo que o poder estatal só pode se justificar se estiver voltado a concretização desses valores. Nesse rol, o diploma consagra, no artigo 1º, como dois os fundamentos da República, a dignidade humana (inciso III) e os valores sociais do trabalho (inciso IV) (RODRIGUES, 2011).

Assim, denota-se que para que a dignidade humana seja plenamente concretizada é necessário, dentre outras coisas, que o indivíduo possua a sua disposição   oportunidade de exercer um labor. Para Delgado (2019), esses dois valores compõem o que se denomina núcleo do Estado Democrático de Direito. 

No mesmo título, o artigo 3º estabelece os objetivos fundamentais da República. De acordo com o dispositivo, o Estado deve sempre atuar buscando, dentre outras coisas, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); o fim da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais (inciso III); o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV) (BRASIL, 1988). 

A partir disso, pode-se perceber que o constituinte originário atribuiu grande importância à pessoa como portadora de dignidade, e que, por isso, merece um conjunto de direitos mínimos para alcançar uma vida digna e realizar o projeto de vida que almejar. Em suma, a pessoa humana passou a ser a prioridade da ordem normativa.

Para tanto, o título II listou com precisão um arcabouço de direitos e garantias fundamentais (BRASIL, 1988). Dado que o artigo 5º, § 2º, estabelece o princípio do não esgotamento dos direitos fundamentais, importa sublinhar que esta lista não é exaustiva. Ou seja, o quadro de proteção estabelecido neste título não exclui princípios constitucionais ou mesmo outros direitos consagrados na Carta e em diplomas de Direitos Humanos (RAMOS, 2019).

A CRFB/88 fixou tais direitos em cinco grupos: 1) direitos e deveres individuais e coletivos; 2) direitos sociais; 3) nacionalidade; 4) direitos políticos; 5) partidos políticos (BRASIL, 1988). É evidente que todos os núcleos mencionados possuem equivalente relevância para a concretização da dignidade humana. Todavia, em atenção aos objetivos da pesquisa, optou-se por focar na análise dos direitos sociais.

Consagrados no Capítulo II, Título I, os Direitos Sociais são entendidos como espécies de recursos que os indivíduos podem exigir do Estado e dos demais membros da sociedade, tanto em forma de prestação como de abstenção, com o objetivo de eliminar ou reduzir obstáculos para a concretização de vida digna (RAMOS, 2019).

De acordo com as lições de Sarlet (2006), os direitos que se relacionam com o cunho pecuniários possuem a finalidade de assegurar a concretização do mínimo existencial, que muito se diferencia do mínimo vital, visto que o objetivo não é garantir apenas mínimo para a sobrevivência do indivíduo, mas com o mínimo para que seja possível viver com dignidade.

Levando em conta a finalidade da investigação, ressalta-se, dentre os direitos sociais, o direito à saúde, alimentação, trabalho, moradia transporte, lazer e previdência sociais, previstos no artigo 6º. Além disso, destaca-se todo o rol de direitos e garantias constitucionais fixadas do artigo 7º ao 11, sem prejuízo de outros que beneficiem a condição social, a ser assegurado a todos os trabalhadores, urbanos e rurais. Com isso, a CRFB/88 consagrou o chamado Direito do Trabalho Constitucional (GARCIA, 2018).

Com isso, o trabalho tornou-se um valor fundamental que constitui a sociedade contemporânea, uma das maiores fontes de uma vida digna, pois proporciona uma contrapartida monetária que é essencial para a efetivação de outros direitos básicos como alimentação, transporte e lazer.

Portanto, o Estado tem o dever constitucional de agir positivamente, por meio de políticas públicas, por exemplo, para assegurar que todas as pessoas tenham a oportunidade de trabalhar. No entanto, não se trata de garantir qualquer forma de trabalho, pois a CRFB/88 não reconhece o trabalho sem dignidade. Por isso surge a relevância de examinar o conceito de trabalho decente, atualmente estabelecido como um conjunto mínimo de direitos para a defesa da dignidade de todos que exercem atividades laborais (BRITO FILHO, 2018).

Para garantir a dignidade humana de todos os trabalhadores de forma equânime, parece necessário estabelecer um conjunto mínimo de direitos para todos os trabalhadores sem discriminação, ou seja, garantir o trabalho decente (BRITO FILHO, 2018).

Essa noção global de trabalho decente é baseada no conceito de universalidade dos direitos humanos, pois sustenta a existência de direitos que precisam ser respeitados em todos os lugares e por todas as pessoas. Além disso, são direitos básicos que garantem a dignidade.

Com relação aos direitos laborais, considera-se que correspondem à segunda dimensão dos Direitos Humanos, chamados Direitos Econômicos e Sociais, que conferem ao Estado um papel positivo na atuação. Em uma análise mais específica da necessidade de garantir direitos mínimos em prol do trabalho decente, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) fixou alguns pilares para a garantia da dignidade humana no campo sócio laborativo (GARCIA, 2018).

Segundo a OIT, para que o trabalho seja considerado digno é necessário que esteja em conformidade com os parâmetros estabelecidos nas Convenções Fundamentais 29 e 105, que preceituam a liberdade no labor; 100 e 111, que vedam a discriminação; 87 e 98, que consagram o direito à liberdade sindical; e 138 e 182, que proíbem a exploração do trabalho infantil.

Todavia, as Convenções supracitadas não estabelecem de fato todos os direitos necessários para a preservação da dignidade humana do trabalhador. Por exemplo, os diplomas não prescrevem o direito de realizar atividades laborais com proteção da vida e da saúde. Portanto, é preciso recorrer a outros diplomas internacionais que também preveem direitos mínimos para o trabalho decente (BRITO FILHO, 2018).

Outra parte importante dos direitos está consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (BRITO FILHO, 2018). O Diploma estabelece um código de ética completamente universal para assegurar a dignidade humana de forma mais ampla, proporcionando direitos econômicos, sociais e culturais, consistentes com os direitos civis e políticos que foram concedidos (ROSENFIELD e PAULI, 2012).

A DUDH dispõe, nos artigos XXII e XXIV: o direito ao trabalho, à livre escolha do emprego, condições justas de trabalho, proteção contra o desemprego, igualdade no trabalho e de remuneração igual, justa e satisfatória, que seja capaz de garantir ao homem-trabalhador e a sua família condições de vida digna, bem como o direito a limitação da jornada de trabalho, repouso, lazer e férias remuneradas, além do direito de se organizar em sindicatos (BRITO FILHO, 2018).

Outrossim, sugere-se que se recorra ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), em razão das previsões sobre direitos que deve, assegurados ao homem-trabalhador, nos artigos 6º ao 9º. De acordo com Rosenfield e Pauli (2012), tais direitos são os mesmos expressos na Agenda do Trabalho Decente da OIT (BRITO FILHO, 2018).

Com base nos referidos diplomas, e com os devidos complementos sugeridos, os direitos mínimos em prol do trabalho decente podem ser organizados em três planos: (1) individual, (2) coletivo e (3) seguridade (BRITO FILHO, 2018).

Incluídos em primeiro plano, ou seja, os indivíduos, têm o direito de exercer uma atividade laboral. Esta é a base para todos os outros direitos mínimos e possibilita que os indivíduos desenvolvam suas habilidades e se conectem com os outros (BRITO FILHO, 2018).

De acordo com a CRFB/88, o Estado Democrático de Direito brasileiro tem a responsabilidade de garantir o valor social do trabalho, e para isso deve justamente garantir o direito de ter a oportunidade de trabalhar (FONSECA, 2006).

Englobado também pelo plano individual, tem-se o direito à liberdade de escolha do trabalho (BRITO FILHO, 2018). Essa liberdade deve ser entendida em sentido amplo, para que o sujeito possa optar por fazer qualquer trabalho que não seja considerado crime – no sentido positivo – e o Estado nunca pode vedar ninguém de fazer qualquer trabalho, ou forçá-lo a fazer – no sentido negativo -.

Este direito só pode ser garantido se o trabalho for realizado livremente, nunca sendo permitido o labor exercido de forma compulsória. Isto porque, segundo  a OIT, “[o] controle abusivo de um ser humano sobre outro é a antítese do trabalho decente”[3].

Da mesma forma, deve-se garantir aos trabalhadores a igualdade de oportunidades para e no exercício do trabalho, ou seja, a oportunidade de trabalhar e a organização dessas atividades devem ser oferecidas a indivíduos de habilidades semelhantes de forma justa. Deve acontecer sem distinção ou desigualdade. O objetivo é eliminar qualquer forma de discriminação injustificada (BRITO FILHO, 2018).

Nas relações laborais, os princípios da igualdade e da não discriminação assumem um papel de extrema importância, dada a maior vulnerabilidade social e econômica dos trabalhadores. Os obreiros devem ser selecionados com base no perfil da empresa, não com base em gênero, orientação sexual, cor ou religião (GURGEL, 2010).

Além disso, no nível individual, há também o direito de exercer o trabalho na proteção da vida e da saúde do trabalhador, ou seja, a atividade deve ser saudável e segura, pois não adianta garantir vagas se o e a saúde mental do trabalhador é prejudicada.

Além desses direitos, no plano individual há a garantia de uma remuneração justa, que, além de condizente com a atividade exercida, garante uma vida digna ao trabalhador. O salário deve ser fixado em um patamar mínimo para que não seja cerceado ou mesmo suprimido (BRITO FILHO, 2018).

No nível individual, está também o direito a condições de trabalho justas, especialmente no que diz respeito à limitação de jornada de trabalho e períodos de repouso, para que os trabalhadores não ultrapassem seus limites e não sofram fadiga e outras lesões como resultado do excesso de horas ou quantidade de labor (BRITO FILHO, 2018).

Outrossim, nada adianta a garantia de vagas de trabalho se o obreiro sofre com violações físicas ou mentais. Logo, para que a atividade laboral não viole a dignidade do sujeito dessa maneira, é imprescindível a garantia do direito de desenvolver o labor em conjunturas que preservem a vida e a saúde do trabalhador, em suma: o trabalho deve ser salubre e seguro (BRITO FILHO, 2018).

Por fim, o plano individual também inclui a proibição do trabalho infantil, pois é extremamente prejudicial ao bom desenvolvimento dessas pessoas. Nesse sentido, a OIT, na Convenção nº 138, estabelece um limite de 15 anos para o início do trabalho, exceto para as piores formas de trabalho infantil, que ocorrem quando o labor é insalubres, perigosos ou noturnos.

No que se refere ao plano coletivo, esta se relaciona com o direito à liberdade de associação. A história mostra que esse direito possui um valor ímpar para os trabalhadores. Isso porque fica claro que, até hoje, a grande maioria dos direitos que os trabalhadores adquiriram se deve à capacidade de se organizar para defender seus interesses. (BRITO FILHO, 2018).

O terceiro plano, vinculado à seguridade, corresponde à proteção dos trabalhadores contra o desemprego e outros riscos sociais, como a redução do potencial de sobrevivência de indivíduos que, na maioria das vezes, possuem apenas a força de trabalho para se manter vivo.

A reunião dos direitos englobados pelos três planos forma, em conjunto, o arcabouço de direitos mínimos necessários para a garantia da dignidade humana no campo sócio laborativo. Negar ao sujeito trabalhador a oportunidade de desenvolver suas atividades nesses parâmetros implica em negar os Direitos Humanos e o violar o princípio que o rege, ou seja, a dignidade humana (BRITO FILHO, 2018).

 

  1. O IMIGRANTE NO BRASIL: CENÁRIO DE SUPER EXPLORAÇÃO DO TRABALHADOR NA INDÚSTRIA TÊXTIL

 

A superexploração da mão de obra dos trabalhadores, em especial dos grupos mais vulneráveis, a exemplo da utilização do trabalho infantil, dos refugiados, da mulher, sempre foi uma prática recorrente para sustentar os altos lucros das empresas na Indústria da moda.

Um número expressivo de pessoas, motivadas por fundados temores de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, são obrigadas a deixar seus países de residência para buscar refúgio em outro país. E grande parte dessas pessoas se encontram em situação irregular, o que implica que muitas delas acabam se submetendo a situações de extrema precarização no trabalho.

O cenário de precarização imposto pela indústria da moda não é novidade, a lembrar do desastre do Rana Plaza em 2013, um prédio que alocava uma fábrica de tecidos que desmoronou na cidade de Daca, em Banglhadesh – por estar em condições impróprias de funcionamento – matando mil cento e trinta e cinco trabalhadores(as). Ao menos três mil trabalhadores confeccionavam roupas para marcas internacionais de forma extremamente precária (BBC, 2013).

No contexto brasileiro, em novembro de 2014, uma fábrica têxtil no centro de São Paulo mantinha um grupo de 37 trabalhadores bolivianos, entre eles 36 adultos (21 homens e 15 mulheres) e um adolescente de 16 anos. Vivendo em alojamentos com condições degradantes, tinham descontos referentes de alimentação e moradia em seus salários, eram submetidos a jornadas exaustivas de trabalho, violência física, verbal e psicológica.

Um boliviano resgatado relatou que produzia 26 vestimentas por hora e um cronômetro ao lado da máquina de costura controlava a produção. No resgate dos trabalhadores foram encontradas nessa fábrica irregular 35 mil peças de uma loja de uma grande rede de departamento. Comumente o nome de grandes marcas é associado à exploração de mão de obra escrava, na busca incansável pelo lucro as empresas de diversos segmentos, mas em especial as da indústria têxtil têm compactuado com a violação de direitos fundamentais sob o argumento de que não têm responsabilidade na maneira que se dá a contratação dos trabalhadores com as fabricas com as quais mantém relações comerciais.

Em dezembro de 2014 o Ministério Público do Trabalho divulgou a sentença da Ação Civil Pública do caso em tela, onde esta que foi condenada ao pagamento de R$ 2,5 milhões de reais por utilizar trabalho análogo ao de escravo de estrangeiros na confecção de suas roupas.

A super exploração do trabalho, em especial dos imigrantes, é sobretudo, resultado de um sistema complexo, resultado da desigualdade social, a falta de oportunidades, a vulnerabilidade social, a falta de políticas públicas, os entraves jurídicos que dificultam a legal permanência e regularização do trabalhador imigrante.

No Brasil, o setor da moda abriga em sua grande maioria imigrantes latino- americanos, em geral, indocumentados. Diversas matérias retratam este cenário, buscando denunciar as condições enfrentadas por esses trabalhadores. Traços recorrentes nas caracterizações jornalísticas são jornadas exaustivas de até 18 horas; salários inferiores ao mínimo; má alimentação; retenção de documentos; cerceamento do direito de ir e vir por meio de portas trancadas e/ou câmeras de vigilância; descontos nos pagamentos relativos a despesas com alimentação, moradia e viagem Bolívia-Brasil; condições insalubres, como pouca luminosidade, deficiência de instalações sanitárias e de moradia (que, muitas vezes, confundem-se com o local de trabalho sendo o local de dormir um colchonete estendido perto da própria máquina de costura do trabalhador); risco de incêndio e explosões devido a más instalações elétricas; intensa coação psicológica por parte dos patrões, etc.

É importante destacar que a inserção e integração ao mercado de trabalho local é dificultada por dois principais motivos, como já mencionado anteriormente: as barreiras linguísticas e a burocracia relacionada à regularização de documentação. Este último, impede que diversos profissionais de outras nacionalidades atuem em setores alinhados às suas formações e faz com que tenham que buscar caminhos que, nem sempre, suprem suas necessidades financeiras.

Assim, diante de tantos os desafios, boa parte dos imigrantes que se encontram no Brasil atualmente, acabam por se sujeitar à atividades em condições degradantes, jornadas exaustivas, sem regularização de vínculo de emprego, e em virtude disto, passa a ser, não raras vezes, vítima de dano existencial.

 

4 O DANO EXISTENCIAL E O TRABALHO DO IMIGRANTE: ANÁLISE SOBRE A JORNADA EXAUSTIVA

 

O dano existencial nas relações laborais, também chamado de dano à existência do trabalhador, ocorre quando o trabalhador sofre lesões que comprometem sua liberdade de escolha e frustam seu projeto de vida, o impossibilitando de se relacionar e de conviver em sociedade por meio de atividades de lazer, sociais, espirituais e de descanso, que lhe trarão bem-estar físico e psíquico e, por sua vez, responsáveis pelo seu crescimento ou realização profissional, social e pessoal.

Beber conceitua

Por dano existencial (também chamado de dano ao projeto de vida ou prejudice d’agrément — perda da graça, do sentido) toda lesão que compromete a liberdade de escolha e frustra o projeto de vida que a pessoa elaborou para sua realização como ser humano (BEBER, 2009, p. 26).

 

Diz-se existencial exatamente porque o impacto gerado pelo dano provoca um vazio existencial na pessoa que perda a fonte de gratificação vital. Por projeto de vida entenda-se o destino escolhido pela pessoa, o que decidiu fazer com a sua vida. O ser humano, por natureza, busca sempre extrair o máximo das suas potencialidades. Por isso, as pessoas permanentemente projetam o futuro e realizam escolhas no sentido de conduzir sua existência à realização do projeto de vida. O fato injusto que frustra esse destino (impede a sua plena realização) e obriga a pessoa a resignar-se com o seu futuro é chamado de dano existencial (BEBER, 2009, p. 28)

A doutrina mais recente tem apresentado um conceito maior ao que destina-se a denominar dano existencial, sendo este dano ao projeto de vida, este é vislumbrado além da esfera patrimonial, mas representa o reconhecimento de violação sobre a liberdade que cada indivíduo tem de escolher, de criar expectativas, planejar, uma vez que este acaba por compelir a vítima, atingindo negativamente seu desenvolvimento pessoal, seu direito à convivência, à desconexão, se materializando através da renúncia à atividades cotidianas de qualquer gênero, comprometendo a esfera de seus desenvolvimento pessoal, podendo inclusive atingir suas atividade biológicas, relações sócio-afetivas, atividades de lazer, influenciando negativamente no seu direito ao meio ambiente e saúde.

Vejamos:

O dano ao projeto de vida refere-se às alterações de caráter não pecuniário nas condições de existência, no curso normal da vida da vítima e de sua família. Representa o reconhecimento de que as violações de direitos humanos muitas vezes impedem a vítima de desenvolver suas aspirações e vocações, provocando uma série de frustrações dificilmente superadas com o decorrer do tempo. O dano ao projeto de vida atinge as expectativas de desenvolvimento pessoal, profissional e familiar da vítima, incidindo sobre sua liberdade de escolher o seu próprio destino. Constitui, portanto, uma ameaça ao sentido que a pessoa atribui à existência, ao sentido espiritual da vida (NUNES, 2007, p.58).

 

Soares afirma que dano existencial “abrange todo acontecimento que incide, negativamente, sobre o complexo de afazeres da pessoa, sendo suscetível de repercutir-se, de maneira consistente – temporária ou permanentemente – sobre a sua existência”, ou seja, o dano existencial não refere-se apenas a uma determinada área da vida do ofendido, mas consegue permear uma ou várias ao mesmo tempo. A autora elenca ainda  como atividades biológicas de subsistência, relações afetivo familiares, relações sociais, atividades culturais e religiosas e atividades recreativas e outras atividades realizadoras, tendo em vista que qualquer pessoa possui o direito à serenidade familiar, à salubridade do ambiente, à tranquilidade no desenvolvimento das tarefas profissionais, ou ao lazer, etc (SOARES, 2009, p. 47).

Esclarece ainda Viana Freire ao traduzir o trecho principal do voto articulado pelo juiz Augusto Cançado Trindade no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos:

[…] O conceito de projeto de vida tem, assim, um valor essencialmente existencial, atendendo-se à idéia de realização integral da pessoa. Ou seja, no âmbito da transitoriedade da vida, cada um procede de acordo com as opções que lhe parecem acertadas, no exercício da plena liberdade pessoal, para alcançar a realização de seus ideais. A busca da realização do projeto de vida revela, pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um. […] É por isso que a ruptura dessa busca, por fatores alheios aos homens – violência, a injustiça, a discriminação -, que alteram e destroem, de forma injusta e arbitrária, o projeto de vida de uma pessoa, reveste-se de particular gravidade, — e o Direito não pode ficar indiferente a isso. A vida — ao menos a que conhecemos — é uma só, e tem um limite temporal, e a destruição do projeto de vida acarreta um dano quase sempre irreparável, ou uma vez ou outra de difícil reparação.[4]

 

Destarte que são inúmeras as esferas abrangidas para a caracterização do dano existencial, seja físico, psíquico, social, dentre outros. Vejamos:

 

[…] toda pessoa tem o direito de não ser molestada por quem quer que seja, em qualquer aspecto da vida, seja físico, psíquico ou social. Submetido ao regramento social, o indivíduo tem o dever de respeitar e o direito de ser respeitado, porque ontologicamente livre, apenas sujeito às normas legais e de conduta. O ser humano tem o direito de programar o transcorrer da sua vida da melhor forma que lhe pareça, sem a interferência nociva de ninguém. Tem a pessoa o direito às suas expectativas, aos seus anseios, aos seus projetos, aos seus ideais, desde os mais singelos até os mais grandiosos: tem o direito a uma infância feliz, a constituir uma família, estudar e adquirir capacitação técnica, obter o seu sustento e o seu lazer, ter saúde física e mental, ler, praticar esporte, divertir-se, conviver com os amigos, praticar sua crença, seu culto, descansar na velhice, enfim, gozar a vida com dignidade. Essa é a agenda do ser humano: caminhar com tranqüilidade, no ambiente em que sua vida se manifesta rumo ao seu projeto de vida (ALMEIDA NETO, 2005, p. 49).

 

Os resultados decorrentes do dano existencial são imensuráveis, seus reflexos em diversas esferas da vida do ser humano são de tamanha magnitude a ponto de gerar escravizamento da perspectiva de um presente e futuro minimamente gratificantes, fulminando metas e objetivos de importância vital à autorrealização (FROTA, 2010, p. 248).

O direito ao projeto de vida somente é efetivamente exercido quando o indivíduo se volta à própria autorrealização integral, direcionando sua liberdade de escolha para proporcionar concretude, no contexto espaço-temporal em que se insere, às metas, aos objetivos e às ideias que dão sentido à sua existência (FROTA, 2010, p. 276).

O fato é que a vida moderna impõe ao trabalhador tantos fatores para que o mesmo se adéque ao mercado de trabalho que o mesmo encontra-se diante de um grave dilema, restrições severas e privações que a ele se impõem, modificando seu projeto de vida, de vida de relação, as quais abarcam todas as relações interpessoais que o ser humano pode e deve ter, e as quais fazem parte de nossa dignificação como ser humano.

As atividades de lazer, recreativas são de tamanha relevância para a vida do homem que representam “uma fonte de equilíbrio físico e psíquico, tal a compensar o intenso desgaste peculiar à vida agitada do mundo moderno” (BONVICINI apud FROTA, 2005, p. 58).

Portanto, podemos afirmar, com base no que a doutrina mais moderna tem elencado, “as condições de vida aviltantes que, normalmente, são impostas a tais trabalhadores também integram o dano existencial, pois não há como alguém manter uma rotina digna sob tais circunstâncias”, a condição de trabalho imposta é tão severa que modifica o modo de viver do ofendido (SOARES, 2009, p. 76).

Aqui também é importante direcionar nosso olhar para os grupos mais vulneráveis, em  especial os trabalhadores refugiados, muitos sem documentação regular no país, sem recursos financeiros, sem domínio de outra língua, agravam sua dificuldade à proteção sindical, acabam expostos a todo tipo de condição de trabalho: Jornadas exaustivas, sem condições mínimas de higidez no ambiente de trabalho, baixa remuneração, sem qualquer reconhecimento de vínculo empregatício, férias e demais verbas devidas.

Mao de obra barata somada à invisibilidade desse grupo, tornam os elementos perfeitos para o cenário da super exploração do trabalhador refugiado. Aliado a isto, a ausência de políticas públicas, faz do refugiado uma vitima em potencial do dano existencial.

Apesar do Brasil ter ratificado desde 1957, a Convenção nº 19 da OIT sobre saúde e segurança no trabalho, o acesso a essas normas não existem para esse grupo de trabalhadores que ainda permanecem excluídos.

Nesse sentido, é necessária a implementação de políticas públicas voltadas para os refugiados, que considerem as particularidades destes grupos. É preciso que o poder público proponha ações para a efetivação, no campo prático, do trabalho digno.

Assim, o dano existencial se coloca  diante desses trabalhadores de modo impositivo, e ainda traz consigo todo um grupo familiar, consequentemente toda sua construção de projeto de vida fica comprometida.

Muitos são os desafios a serem superados no contexto brasileiro, mas podemos falar que já há a possibilidade responsabilização do empregador. Caracterizado o dano existencial, este deve ser devidamente reparado.

 

  1. A POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DO EMPREGADOR PELO DANO EXISTENCIAL

 

No artigo 1º da CRFB/88, há a consagração da dignidade humana. De acordo com Rodrigues (2011), a previsão determina que todos os integrantes da sociedade merecem igualmente respeito por parte do Estado e da sociedade. Com isso, é dever do Estado se abster de atos que violem tal fundamento, além de deter a obrigação constitucional de agir para garantir vida digna a todos. 

O mesmo artigo estabelece o valor social do trabalho, no inciso IV. Com isso, é possível interpretar, a partir de uma leitura sistêmica, que o gozo pleno da dignidade humana é impossível sem o trabalho. Desse modo, esses dois valores juntos formam parte central de um Estado Democrático de Direito (DELGADO, 2019).

O Título II lista com precisão o conjunto de direitos e garantias fundamentais (Brasil, 1988). Dado que o artigo 5º, § 2º, da CRFB/88 estabelece o princípio do não esgotamento dos direitos fundamentais, importa sublinhar que esta lista não é exaustiva. Ou seja, o quadro de proteção estabelecido neste título não exclui princípios constitucionais ou mesmo outros direitos previstos no ordenamento e em diplomas de Direitos Humanos (RAMOS, 2019).

A partir disso, pode-se perceber que os fundadores originários atribuíram grande importância às pessoas como detentoras de dignidade e, portanto, detentores de um conjunto de direitos básicos para alcançar uma vida digna. Em síntese, o ser humano passa a ser a prioridade da ordem normativa.

Nesse sentido, em meio aos diversos direitos mínimos previstos constitucionalmente em prol da dignidade, a CRFB/88 fixou, no Capítulo II, do Título II, os Direitos Sociais. Nesse rol, há a fixação dos direitos mínimos a serem assegurados a todos os trabalhadores, urbanos ou rurais em prol da dignidade humana, como, por exemplo, disposição sobre meio ambiente saudável (incisos XXII e XXIII) e condições justa de trabalho com a limitação de jornada e períodos de repouso (incisos XIII, XIV, XV e XVII).

Em conformidade com o expresso no artigo 225 da CRFB/88, a doutrina passou a defender, então, a necessidade de equilíbrio do ambiente de trabalho entendido como “[…] aquele formado pelos componentes naturais, físicos, organizacionais e psicossociais, constituindo um todo sistêmico e indissociável em que a humanidade do trabalhador é vista como um fim e não mero instrumento no processo produtivo” (QUARESMA, 2020, p. 66-67).

Um meio ambiente qualificado é direito de todas as pessoas, sendo imprescindível a constante melhoria e a implementação de princípios que coíbem excessos e poluição. A degradação ambiental tem um impacto negativo em todos os setores da sociedade (QUARESMA, 2020).

 Portanto, no ordenamento jurídico pátrio, a saúde no ambiente de trabalho tem fundamentos sólidos, principalmente porque a proteção está contida no instrumento jurídico mais relevante: a Constituição, que determina claramente a redução dos riscos ao trabalhador, por meio de medidas para manter a saúde, higiene e segurança, bem como uma qualidade de vida saudável, em um ambiente equilibrado (QUARESMA, 2020).

Feitas as breves notas acerca do trabalho decente e explanado o conceito do dano existencial, com suas implicações e exemplos, cabe-nos finalizar estas reflexões inquirindo acerca da possibilidade jurídica de responsabilização do empregador pelo dano existencial perpetrado no bojo de uma relação de trabalho.

A ideia de responsabilização aqui invocada é a de responsabilidade civil, é dizer, o elo jurídico obrigacional que comina ao autor de um dano o dever de repará-lo, uma vez presente o nexo de causalidade entre sua conduta e os danos suportados pela vítima, e que seja – quando o ordenamento assim o exige – culposa tal conduta comissiva ou omissava do agente.

A sede normativa da responsabilidade civil, no sistema jurídico doméstico, repousa, primeiramente, na Constituição Federal de 1988 que tutela não apenas a esfera material/patrimonial da pessoa, mas, outrossim, sua esfera moral, garantindo-lhe a reparação, na forma indenizatória (tutela ressarcitória pelo equivalente), dos danos materiais, morais ou à imagem (art. 5º, V e X). Em sede legal ordinária, a responsabilidade civil tem sua disciplina em destaque no Código Civil de 2002 – artigos 186, 187, 927 a 954 – no qual recebeu título específico, havendo aplicação supletiva às relações de trabalho, tanto por força da ideia do direito como sistema – reconhecendo-se às normas civis um conteúdo geral aplicável aos demais ramos jurídicos –, mas também, de modo positivado, pelo teor do art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), notadamente seu parágrafo primeiro (CANARIS, 2002, p.25).

Inobstante a disciplina normativa constitucional e civilista acerca da responsabilidade civil, o Direito do Trabalho recebeu novo influxo normativo quanto à matéria pela Lei da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), a qual acresceu ao texto da CLT capítulo próprio para tratar, especificamente, “Do Dano Extrapatrimonial”, disposições que devem somar-se, sistemática e coerentemente, às disciplinas normativas constitucional e civil (dentre outras, como a consumerista e ambiental), em que pese a pretensão de exclusividade estampada no art. 223-A da Consolidação.

Relevante notar que a nova disciplina trabalhista do dano extrapatrimonial reconheceu, expressamente, a categoria autônoma do dano existencial ao mencionar a esfera existencial da pessoa, à luz do art. 223-B, primeira parte, o qual dispõe que “Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica”.

Dentre os bens jurídicos tutelados à pessoa humana, conforme elencados exemplificativamente no novel texto celetista – sem embargo de, mais uma vez, pretender a lei exclusividade na disciplina da matéria (art. 223-C) – estão a liberdade de ação, a autoestima, a saúde e o lazer, os quais têm estreita ligação com o conceito de dano existencial outrora desenvolvido. A exigência de longas e extenuantes jornadas de trabalho e a subtração dos multifacetados direitos aos descansos laborais (semanal e anual, especialmente), dentre outras condutas que afetam a vida de relações do trabalhador e/ou seu projeto de vida, são lesivas à liberdade de ação do ser humano, à sua autoestima diante da vida, à sua saúde e ao seu direito ao lazer, o que deixe indene de dúvidas que o dano existencial está, agora, expressamente contemplado nas tintas do diploma celetista.

Nesta passada, é possível afirmar a franca possibilidade de responsabilização do empregador pelo dano existencial a partir de, pelo menos, três perspectivas: a individual, a ambiental e a coletiva.

Na perspectiva individual, a responsabilidade do empregador encontra eco na responsabilidade civil subjetiva à luz das regras ordinárias do Código Civil – de acordo com as quais “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (art. 927) –, bem como pela normatização específica da CLT que reconhece, como já dito, a esfera existencial da pessoa como dimensão passível de violação e reparação extrapatrimonial, aduzindo, o texto celetista, que serão responsáveis pelo dano extrapatrimonial todos os que tenham colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, indicando, ainda, que tal responsabilidade se dará na proporção da ação ou da omissão (art. 223-E).

No tocante à perspectiva ambiental, tem-se que as condutas revisitadas neste trabalho, potencialmente causadoras de dano existencial – a exemplo de jornadas extenuantes e supressão/redução de descansos laborais –, são medidas de desequilíbrio do meio ambiente do trabalho, tendo que em vista este ramo jusambiental não se limita à dimensão físico-espacial da prestação de trabalho, mas abrange a dimensão do ritmo e modo de fazer o trabalho (técnica) e das relações interpessoas travadas pelo trabalhador (MARANHÃO, 2017).

Ora, constatado que a conduta geradora de dano existencial decorreu de poluição labor-ambiental, a questão, que é originalmente justrabalhalhista, recebe os influxos principiológicos do Direito Ambiental, impondo ao poluidor ambiental (empregador) que indenize – no esteio da responsabilidade objetiva, inclusive – a vítima da violação à sadia qualidade do meio ambiente do trabalho, à luz, dentre outros dispositivos, do art. 225, §3º, da CF/88, art. 14, §1º, Lei 6938/81 e art. 157, I, CLT.

A dimensão coletiva, por sua vez, repousa na ideia de que o dano existencial, caso decorra de desequlíbrio do meio ambiente laboral, ou, por outro viés, seja imposto a uma coletividade de trabalhadores – inclusive como mecanismo de gestão por stress da força produtiva (assédio moral organizacional) –, expressará ofensa a direitos e interesses transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), o que permite não apenas a tutela pelos legitimados coletivos (Ministério Público do Trabalho, Sindicato e Associações Profissionais), mas a eventual responsabilidade do empregador por danos morais coletivos, também chamados danos sociais, com espeque, dentre outros, no art. 1º, caput, IV, Lei 7347/85 e art. 81 do Código de Defesa do Consumidor (COSTA et al., 2020, p.699).

Por fim, cumpre anotar breves considerações sobre a questão do quantum indenizatório do dano existencial, tendo em vista que, inviável a reparação integral com o retorno do trabalhador ao status quo, como dito linhas acima, a tutela ressarcitória será feita pelo equivalente, é dizer, por quantia em dinheiro que – longe de precificar o tempo, as relações ou os projetos de vida do trabalhador – lhe compense, minimamente, a violação a sua dignidade, possibilitando uma compensação satisfatória em razão do dano sofrido.

O novel título da CLT acerca do dano extrapatrimonial elenca uma série de parâmetros para fixação do quantum indenizatório (art. 223-G, caput e seus incisos), questão que outrora era tratada, praticamente com exclusividade, em sede doutrinária e jurisprudencial. Interesse-nos mais, entretanto, a limitação que foi feita ao valor da indenização (tarifação da indenização por danos morais), bem como o já famigerado critério do último salário contratual do ofendido para fixação do quantum.

No desafio de cingir as considerações à problemática proposta, cumpre afirmar a inconstitucionalidade não apenas da tentativa de tarifação da indenização por danos morais e existenciais, o que viola a garantia de máxima eficácia do direito à reparação previsto constitucionalmente (art. 5º, V e X), mas também a inconstitucionalidade da gradação do valor indenizatório de acordo com o salário contratual do ofendido, comando nitidamente anti-isonômico que desconsidera que a dignidade, a felicidade e realização pessoal da pessoa humana não se desigualam porque um trabalhador recebe maior contraprestação pecuniária do que outro, tornando patente a violação aos arts. 3º, IV, e 5º, caput, da Carta Constitucional (LEAL, 2018, p. 147).

Destarte, não apenas possível, no plano normativo, mas exigida pela principiologia constitucional e juslaboral a responsabilização do empregador por dano existencial causado ao obreiro, medida que se impõe para tutela adequada e suficiente da dignidade do ser humano trabalhador.

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Como é cediço, o sistema jurídico por muitas décadas gravitou por situações juridicamente relevantes apenas tutelando a proteção da inviolabilidade de direitos restritos à esfera patrimonial, a qual tem, de fato, sua relevância, no entanto é imensamente limitada, restringindo o ser humano apenas à recomposição pecuniária.

É mister que a pessoa humana abarca uma série de garantias as quais se manifestam sobre a personalidade, hoje chamados de direitos de personalidade, aos quais englobam uma multiplicidade de interesses imateriais que circundam a sua natureza de ser humano.

O princípio fundamental garantido constitucionalmente, inclusive como princípio basilar da República, assimila diversidade de interesses legítimos que o ser humano possui, no entanto, necessita de mecanismos para ser tutelada, a fim de garantir de fato a dignidade a todos.

Neste particular, vale mencionar que o trabalhador por décadas tem lutado, ainda que com a própria vida, para conquistar novas garantias e direitos antes sufocados pelo modelo de mercado de trabalho, no qual os empregadores buscam lucros a qualquer preço, produção em larga escala, jornadas exaustivas para que a produção acompanhe o consumo, e assim, colocando preço na vida do trabalhador, na sua dignidade.

A tutela dos bens imateriais, tais como o dano existencial, o qual tutela o direito garantido a todo ser humano de ter um projeto de vida, de ter suas relações quer pessoais, emocionais, culturarais e religiosas salvaguardadas, é inovadora, dentro de um contexto macro, ainda pouco pleiteia-se, pouco se conhece, no entanto, os Tribunais, em especial o TST, tem passado a reconhecer a ocorrência do dano existencial nas relações de trabalho, e possibilitando ao jurisdicionado a garantia de ver seus direitos oficialmente regulados.

O meio ambiente saudável, o direito ao bem estar, à felicidade, ao projeto de vida, antes sequer mencionado no ordenamento jurídico tampouco na doutrina, hoje tem ganhado espaço, e se compreendido que tais direitos também fazem parte daquilo que chamamos de garantir à pessoa humana dignidade, é garantir que seu trabalho também lhe conceda dignificação.

A tutela ao dano existencial do ser humano nas relações de trabalho cumpre assimilar a essência do que denomina prejuízo existencial, e quais mecanismos possuímos para salvaguardá-los, uma vez que diferentemente dos danos materiais, o dano existencial não tem a possibilidade de reestabelecer o status quo ao ofendido, a energia empregada, o tempo de vida, o convívio familiar, o crescimento dos filhos, o projeto de vida, não tem como ser devolvido ao trabalhador, e quaisquer valor a título de ressarcimento em pecúnia jamais lhe ressarcirá de forma cabal e satisfatória.

Resta claro que o direito tem como maior finalidade tutelar e salvaguradar a vida e dignidade do ser humano, sem quaisquer distinção. O ser humano não tem preço, tem dignidade, como já afirmou Kant, de modo que todo ser humano, seja na esfera pessoal, ou em suas relações de trabalho, merece ter dignidade.

Por fim, a pesquisa concluiu pela possibilidade, no plano normativo, da responsabilização do empregador pelo dano existencial causado no bojo da relação de trabalho, tanto na perspectiva individual da relação jurídica travada entre os contratantes do liame juslaboral, quanto na perspectiva ambiental – tendo em vista a possível dimensão laborambiental das condutas causadoras do dano –, bem como, ainda, na perspectiva coletiva dos chamados danos morais coletivos.

A responsabilização do empregador não é apenas possível, mas se mostra um imperativo da principiologia constitucional e juslaboral, revelando-se como medida que se impõe para tutela adequada e suficiente da dignidade do ser humano trabalhador.

 

REFERÊNCIAS

 

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SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por ano existencial. Porto Alegre: livraria do advogado, 2009.

 

[1] Doutor em Direito da Relações Sociais pela PUC/SP; Pesquisa de Pós-Doutorado no UniCEUB; Vice Coordenador do PPGD/UFPA; Titular da cadeira nº26 da ABDT. E-mail: jclaudiobritofilho@gmail.com; Lattes: http://lattes.cnpq.br/7823839335142794.

[2] Mestranda PPGEAA/UFPA; Advogada. Pós graduada lato sensu em Direito do  Material e Processual do Trabalho pelo Centro Universitario do Estado do Pará (CESUPA). Membro do Grupo de Pesquisa em Trabalho decente (CNPQ); Membro da Comissão de Direito do Trabalho – OAB/PA; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0004-1289. Lattes:http://lattes.cnpq.br/8996867920479675.  E-mail: julianamarques_adv@hotmail.com.

[3] Organização internacional do trabalho. Não ao trabalho forçado. Relatório Global do seguimento da Declaração da OIT relativa a Princípios e Direitos fundamentais no Trabalho. Relatório do Diretor Geral. Relatório I (B), Conferência Internacional do Trabalho. 89ª Reunião 2001. Oficina Internacional do Trabalho. Secretaria Internacional do Trabalho. Genebra, 2001, p. 1.

[4] Nossa tradução do trecho principal dos itens 3 a 4 do voto articulado pelo Juiz Augusto Cançado Trindade, no b C I D H , “[…] 3. T tiempo, que termina por consumirnos. Precisamente por vivirnos en el tiempo, cada uno busca divisar su proyecto de vida. El vocablo ‘ y ’ encierra en sí toda una dimensión temporal. El concepto de proyecto de vida tiene, así, un valor esencialmente existencial, ateniéndose a la idea de realización personal integral. Es decir, en el marco de la transitoriedad de la vida, a cada uno cabe proceder a las opciones que le parecen acertadas, en el ejercicio de plena libertad personal, para alcanzar la realización de sus ideales. La búsqueda de la realización del proyecto de vida desvenda, pues, un alto valor existencial, capaz de dar sentido a la vida de cada uno. 4. Es por eso que la brusca ruptura de esta búsqueda, por factores ajenos causados por el hombre (como la violencia, la injusticia, la discriminación), que alteran y destruyen de forma injusta y arbitraria el proyecto de vida de una persona  revístese de particular gravedad, – y el Derecho no puede quedarse indiferente a esto. La vida – al menos la que conocemos – es una sola, y tiene un límite temporal, y la destrucción del proyecto de vida acarrea un daño casi siempre verdaderamente irrepa b , fí b .”. Cf. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Gutiérrez Soler Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 12 de septiembre de 2005. Serie C nº 132. Voto razonado del Juez A.A. Cançado Trindade. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_ cancado_132_esp.doc>. Acesso em: 09 mai. 2023. 

 

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