Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente

Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente
RIDCA - Edición Nº2 - Derecho Constitucional y Derechos Humanos

Javier Alejandro Crea. Director

20 de diciembre de 2022

A consulta prévia como mecanismo da democracia participativa e a invisibilidade dos povos indígenas
La consulta previa como mecanismo de democracia participativa y la invisibilización de los pueblos indígenas

Autores. Tamara Brant Bambirra y Deilton Ribeiro Brasil. Brasil

Tamara Brant Bambirra[1]

Deilton Ribeiro Brasil[2]

 

RESUMO

O presente trabalho busca, através do método descritivo-anáilito, a partir da pesquisa bibliográfica e da análise de dados abordar a consulta prévia como uma forma de promover diálogos interculturais não violentos. Este artigo considera a consulta como instrumento de fortalecimento da democracia participativa e de inclusão de grupos culturalmente diferenciados, exprimindo a ideia de cidadania ativa, inclusão nas deliberações públicas e protagonismo da soberania popular. A metodologia é baseada nas pesquisas documentais, doutrinárias e de revisões bibliográficas. A pesquisa se justifica jurídica e socialmente, pela importância da Convenção 169 da OIT como norma positivada e protetiva de direitos indígenas e pela necessidade de se pensar em mecanismos para reforçá-la.

Palavras-chaves: Diálogos interculturais; Consulta prévia; Povos indígenas; Democracia participativa.

 

ABSTRACT

The present work seeks, through the descriptive-analytical method, from bibliographical research and data analysis to approach the previous consultation as a way to promote non-violent intercultural dialogues. This article considers consultation as an instrument for strengthening participatory democracy and including culturally differentiated groups, expressing the idea of ​​active citizenship, inclusion in public deliberations and protagonism of popular sovereignty. The methodology is based on documental, doctrinal and bibliographical research. The research is justified legally and socially, by the importance of Convention 169 of the ILO as a positive and protective norm of indigenous rights and by the need to think about mechanisms to reinforce it.

Keywords: Intercultural dialogues; Prior consultation; Indigenous peoples; Participatory democracy.

 

INTRODUÇÃO

 

A primeira premissa em que se baseia este artigo é de que houve um processo de conquista, e não de descobrimento, de terras em que habitavam povos indígenas na América marcado por uma série de injustiças e violências institucionalizadas cujo fator comum está no ocultamento e na invisibilização desses povos. Não houve, portanto, um simples encontro entre culturas diversas. O fato da colonização da América incide diretamente nos moldes de nossa atual sociedade.

No contexto atual, a respeito da validação constitucional das diferenças, vale registrar que logo no primeiro artigo da Constituição de 1988 o legislador constituinte afirmou que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição. Além disso, o constituinte originário também fixou como objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, inciso I) e a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, inciso IV). De mais a mais, fundamental considerar que o artigo 216 da Constituição diz que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver. Além disso, o artigo 231 também reconhece aos povos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.

Esses dispositivos constitucionais não apenas reconhecem a pluralidade do povo brasileiro, mas também avançam em relação à ideia reducionista e equivocada que entende a democracia como simples vontade da maioria e consagra uma concepção democrática que se preocupa com o bem de todos, sem exclusão de ninguém, instituindo, assim, uma base importante para a leitura mais participativa e aberta do ordenamento jurídico.

A respeito da consulta prévia como uma forma de promover diálogos interculturais não violentos, a tese que é sustentada neste trabalho considera a consulta como instrumento de fortalecimento da democracia participativa e de inclusão de grupos culturalmente diferenciados, exprimindo a ideia de cidadania ativa, inclusão nas deliberações públicas e protagonismo da soberania popular. Em outros termos, a ideia central busca declarar a crise e a insuficiência da noção tradicional de democracia representativa partindo da experiência e do legado modernos ao manter o lugar da política representativa, por um lado, e, por outro lado, propor medidas para enraizar a participação popular organizada e voltada aos interesses de realização de direitos e promoção de justiça

O objetivo do artigo, portanto, é demonstrar que na consulta aos povos indígenas deve-se considerar que existe uma situação histórica, social e política que estabelece, desde o seu início, um desequilíbrio na participação entre as partes, que precisa ser minorado.

As metodologias adotadas foram a dedutiva, porque, a partir de certas premissas, serão construídas conclusões sobre a temática apresentada, respeitando-se uma estrutura lógica de pensamento, e a descritivo-analítica, porque a exposição estimula o diálogo teórico e a reflexão acerca do tema proposto. Os procedimentos técnicos utilizados na pesquisa para coleta de dados foram a pesquisa bibliográfica, a doutrinária e a documental. O levantamento bibliográfico forneceu as bases teóricas e doutrinárias a partir de livros e textos de autores de referência, tanto nacionais como estrangeiros.

Enquanto o enquadramento bibliográfico utiliza-se da fundamentação dos autores sobre um assunto, o documental articula materiais que não receberam ainda um devido tratamento analítico. A fonte primeira da pesquisa é a bibliográfica que instruiu a análise da legislação constitucional e a infraconstitucional, bem como a doutrina que informa os conceitos de ordem dogmática.

 

  1. A INVISIBILIDADE DOS INDÍGENAS HERANÇA DE UMA HISTÓRIA DE OPRESSÃO

 

O continente Americano, antes da chegada dos espanhóis, era ocupado por diversos povos com culturas completamente distintas. Na América existiam sociedades estruturadas, que possuíam relações comerciais, tinham suas formas de negociação e uma política própria e nativa, além de estabelecerem alianças e guerras. Ainda tinham o seu meio de exploração ambiental baseado em uma busca de subsistência e desenvolvimento de suas sociedades.

Os índios estavam acostumados a não ter de prontidão mais do que necessitavam e que obtinham com pouco trabalho. E o que poderia bastar durante um mês para três lares de dez pessoas indígenas, um espanhol o come ou destrói em um só dia (CASAS, 2008, p.30). A conquista da América se concretizou em um período relativamente curto, em 1942, ano da descoberta, foi constituída a primeira colônia permanente, pelo descobridor Cristóvão Colombo. Na ilha Espanhola que foi a primeira, como se disse que chegaram os espanhóis, começaram as grandes matanças e perdas de gente, tendo os espanhóis começado a tomar as mulheres e filhos dos índios para deles servir-se e usar mal e a comer seus víveres adquiridos por seus suores e trabalhos, não se contentando com que os índios de bom grado lhes davam (CASAS, 2008, p.30).

A causa pela qual os espanhóis destruíram tal infinidade de almas foi unicamente não terem outra finalidade última senão o ouro, para enriquecer em pouco tempo, subindo de um salto a posição que absolutamente não convinham a suas pessoas; enfim, não foi senão sua avareza que causou a perda desses povos, que por serem tão dóceis e tão benignos foram tão fáceis de subjugar (CASAS, 2008, p.29). O grande potencial de recursos naturais encontrado na América, alterou consideravelmente a economia europeia, o sucesso espanhol nas terras americanas, estava de certo modo, relacionado com a sua capacidade de acumular e explorar as riquezas do território conquistado.

Foram utilizados vários meios e instrumentos de conquista e colonização, com o intuito de que as colônias funcionassem em função da metrópole, sendo que a princípio a colonização foi caracterizada pelo saque e pelo assalto. Os índios iam ao encontro dos espanhóis para os receber, à distância de dez léguas de uma grande vila, com víveres e viandas delicadas e toda espécie de outras demonstrações de carinho. E tendo chegado ao lugar, deram-lhes grande quantidade de peixe, de pão e de outras viandas, assim como tudo quanto puderam dar. (CASAS, 2008, p.41).

Dois traços dos índios parecem, à primeira vista, menos previsíveis do que os outros: são a generosidade e a covardia. Na falta das palavras índios e espanhóis trocam desde o primeiro encontro pequenos objetos, e Colombo não se cansa de elogiar a generosidade dos índios, que dão tudo por nada. (TODOROV, 2019, p. 52). Esses pobres cordeiros serviram os espanhóis com a maior boa vontade, nada mais faltando senão adorá-los. Entretanto o capitão havia pedido aos índios muito ouro, pois ali tinham ido justamente para isso. Os índios responderam que estavam prontos para dar todo o ouro que tivessem e juntaram grande quantidade de achas de cobre que possuem, douradas, e das quais se servem, essas achas parecem de ouro e têm uma certa quantidade desse metal. O capitão fez examiná-las e como viu que era cobre disse: que este país seja mandado ao diabo, vamo-nos embora daqui, pois não há ouro, e que cada espanhol ponha a ferros os índios que se apoderou e os faça marca como escravos (CASAS, 2008, p.66). Depois de muitos outros abusos, violências e tormentos a que se submetiam, os índios começaram a perceber que esses homens não podiam ter descido do céu. (CASAS, 2008, p.30).

Os europeus, passaram a entender que somente a ocupação das terras conquistadas não era o suficiente, era necessário e essencial que essas terras fossem produtivas, o que configura que deveriam ser cultivadas. Posto isto, tal fato necessitava de uma força de trabalho barata, que atendesse as necessidades e desenvolvimento econômico da metrópole. Sendo assim, começaram a coordenar a exploração de suas colônias, obviamente evidenciando a soberania da Coroa, através de uma política de colonização e de medidas para estipulação da fé cristã, bem como a consolidação de um amplo domínio da terra e do povo que nela vivia.

 Os espanhois dão a religião e tomam o ouro, Colombo age como se entre as duas ações se estabelecesse um certo equilíbrio. Porém além de a troca ser bastante assimétrica, e não necessariamente interessante para a outra parte, as implicações desses dois atos se opõem. Propagar a religião significa que os índios são considerados como iguais (diante de Deus). E se eles não quiserem entregar as riquezas? Então será preciso subjugá-los, militar e politicamente, para poder tomá-las à força, em outras palavras, colocá-los, agora do ponto de vista humano, numa posição de desigualdade, de inferioridade (TODOROV, 2019, p. 62).

Assim gradativamente Colombo passará do assimilacionismo, que implica uma igualdade de princípios, à ideologia escravagista e, portanto, a afirmação da inferioridade dos índios (TODOROV, 2019, p. 64). Deste modo, a conquista e a colonização da América pelos europeus resultou na formação de uma sociedade classificada em superiores e inferiores, de conquistadores e conquistados, dominadores e dominados, sendo que essa divisão se baseia na diferenciação étnica.

Os europeus perceberam a serventia e conveniência dos indígenas como mão de obra oportuna para o momento. O fato de que os europeus tinham tecnologias muito mais avançadas do que os indígenas favoreceu na efetivação da conquista, submetendo-os ao poder  da Coroa, uma vez que os europeus já conheciam o aço, as armas de fogo e utilizavam o cavalo como meio de transporte, o que foi fundamental para a submissão dos indios à escravidão, mesmo os indios superando os europeus em números de “guerreiros”. Fazendo assim com que os conquistadores europeus se tornassem senhores das terras Americanas.

Os índios, quando martirizados e conduzidos pelas montanhas a carregar bagagens se vêm a cair de fraqueza e de dor, os espanhóis lhes aplicam pontapés e pauladas e lhes quebram os dentes com os copos da espada a fim de que se levantem e caminhem para frente sem tomar fôlego. (CASAS, 2008, p.83).

Quando domesticamos um membro de nossa espécie, diminuímos o seu rendimento e, por pouco que lhe demos, um homem reduzido à condição de animal doméstico acaba por custar mais do que produz. Por esse motivo os colonos vêem se obrigados a parar a domesticação no meio do caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena. Derrotado, subalimentado, doente, amedrontado, mas só até certo ponto,tem ele, seja amarelo, negro ou branco, sempre os mesmos traços de caráter: é um preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de nada e só reconhece a força (FANON, 1968, p.10).

O patrão provoca-o porque procura bestializá-lo, falha em destruí-lo porque seus interesses o detêm a meio caminho. Assim, os indígenas ainda são humanos, pela força e a impotência do opressor que se transformam neles numa obstinada recusa à condição animal. Quanto ao mais, já se sabe: são preguiçosos é claro, e isso é sabotagem. Dissimulados, ladrões, sem dúvida; seus pequenos furtos assinalam o começo de uma resistência ainda desorganizada. Isso não basta; para que se afirmem têm de investir desarmados contra os fuzis. Estes são os seus heróis, e outros se fazem homens assassinando europeus. São mortos. Bandidos e mártires, seu suplício exalta as massas aterrorizadas (FANON, 1968, p.11).

Embora os povos que habitavam a América tivessem práticas sociais complexas, estes desconheciam a pólvora, o cavalo como meio de transporte, o arado, o que representava um desnível no desenvolvimento entre conquistadores e conquistados, sendo facilitadores para as conquistas dos europeus.

É necessário assim, considerarmos o impacto visual gerado por símbolos como estes e como reverberou no imaginário dos indígenas, tendo as armas, cavalos e a violência dos europeus causado um grande abalo psicológico, já que a chegada destes e de tudo que traziam implicou em grande estranheza para os povos que habitavam a América. Fisicamente nus os índios também são na opinião de Colombo, desprovidos de qualquer propriedade cultural, caracterizam-se, de certo modo, pela ausência de costumes, ritos e religião (TODOROV, 2019, p. 48)

Esta visão de Colombo é facilitada pela capacidade que tem em ver as coisas como lhe convém. Neste caso, particularmente, os índios já são, a seu ver, dotados de qualidades cristãs, e já desejam a conversão. Vimos que segundo ele os índios não pertenciam a nenhuma seita, eram virgens em matéria de religião e na verdade já tinham uma predisposição ao cristianismo. E as virtudes que imagina encontrar neles são virtudes cristãs (TODOROV, 2019, p. 60)

É nítido na história da colonização da América a influência e importância desempenhada pela igreja católica, uma vez que a sua expansão e dominação pelas colônias facilitou as relações de dominação entre o colonizador catolico e o colonizado.

Entretanto, a imagem que o Colombo tinha dos indígenas só pode ser obtida através da supressão de todos os traços dos índios que poderiam contradizer Colombo, supressão no discurso sobre eles e também, se for o caso, na realidade. Durante a segunda expedição os religiosos que acompanham Colombo começam a converter os índios, mas falta muito para que todos se curvem e se ponham a venerar as imagens santas. (TODOROV, 2019, p. 61).

O malvado e miserável governador ordenou que quando tivessem o propósito de ir pilhar ou roubar algum lugar onde soubessem que havia ouro, estando os índios em suas vilas e casas, e sem suspeitar de nada, fossem os malvados espanhóis como bandidos até uma meia légua perto da vila, burgo ou aldeia, e lá durante a noite, fizessem a leitura e publicação ou gritassem as ordens dizendo assim: Caciques e índios desta terra firma do lugar tal, nós vos fazemos saber que existe um Deus, um Papa e um Rei de Castela que é senhor destas terras, vinde incontinenti render-lhe homenagens, porque se não o fizerdes sabei que nós vos faremos guerra e vos mataremos e vos escravizaremos (CASAS, 2008, p.45).

Os europeus nunca tiveram nenhuma guerra justa contra os índios. Todas foram diabólicas, e muito injustas, mais do que as de qualquer tirano que existia no mundo. (CASAS, 2008, p.33). A igreja católica atuou intensamente no processo de conquista e colonização da América, sendo usada como meio para justificar até mesmo atos de violência contra os indígenas, atos estes que eram entendidos pelos europeus como de fé e caridade, legitimando até mesmo as matanças de índios sob o pretexto de purificação de suas abomináveis heresias. Esse fundamento ideológico foi usado para subjugar e ceifar milhares de escravos, explorar terras e jazidas, incendiar florestas, degradar solos. A fé cristã foi utilizada como uma ferramenta para destruir e modificar hábitos, valores e cultura dos povos que habitavam a América.

Ademais, houve não só a colonialidade do poder, mas também a do saber, segundo Lander (2005, p. 21-54), uma vez que os europeus expropriaram as populações colonizadas e escravizadas de seus mais aptos produtores culturais. Além disso, reprimiram tanto quanto puderam as formas de produção de conhecimento dos colonizados e escravizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, sua maneira de ver o mundo e de expressar e objetivar sua subjetividade. E ainda, forçaram os colonizados e os escravizados a aprender a cultura dos dominadores em tudo o que fosse útil para a reprodução da dominação, tanto no campo da atividade material e tecnológica como no da subjetiva, especialmente a religiosa, impondo-se para todo o sistema-mundo que surgia a religiosidade judaico-cristã.

Consequentemente, se criou uma hegemonia européia ocidental, visto que todos os colonizados foram inseridos numa ordem cultural global única, além do poder capitalista a Europa obteve o controle da subjetividade, do conhecimento, da cultura, da forma de pensar e significar o mundo, do conhecimento e da produção do conhecimento.

 

  1. A INSUFICIÊNCIA DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

 

Diante de todo o histórico de opressão consubstanciado nos processos de colonização, catequização, assimilação e escravização, a Constituição Federal de 1988 assegurou aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem com os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, a Convenção 169 da OIT assegurou, em seu artigo 6º, o direito à consulta prévia, livre e informada sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente, bem como estabeleceu que essas consultas devem ter por objetivo chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas (PERUZZO, 2017, p. 2719).

Após a Constituição de 1988 a participação popular de maneira ampla foi prevista em vários documentos. Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069) assegurou o direito da criança e do adolescente a participar da vida política (artigo 16, inciso VI). Em 1992, foram promulgados o Pacto de Direitos Civis e Políticos (Decreto n. 592/92) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto 678/1992) que garantiram o direito à participação de todo cidadão na condução dos assuntos públicos de seu país. Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394) assegurou a gestão democrática do ensino público com a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (artigo 14, inciso II).

Apesar da garantia expressa desses direitos na legislação oficial, os procedimentos de participação nas tomadas de decisão e, em especial, para a formulação das consultas aos povos tradicionais ainda não se desenvolveu ao ponto de significar um processo de diálogo que seja capaz de proporcionar a comunicação não apenas de decisões já tomadas pelo Estado, como ocorreu desde o início da exploração colonial, mas também dos interesses e discordâncias por parte de todos os interlocutores envolvidos (PERUZZO, 2017, p. 2720).

O direito à consulta foi previsto pela primeira vez na Convenção 169 da OIT como um instrumento de participação e respeito num momento em que se pretendia estabelecer uma nova relação entre Estado e povos indígenas (FAJARDO, 2009, p. 21). Rompeu-se com a lógica integracionista da anterior Convenção 107, também da OIT, estabelecendo novas bases para uma relação em que os povos indígenas poderiam controlar suas instituições, modelo de desenvolvimento e participação nas políticas estatais (FAJARDO, 2009, p. 15).

Antes, na Convenção 107, não havia previsão para participação dos povos indígenas nas medidas que lhes influenciassem direta ou indiretamente. Na verdade, cabia aos governos promover o desenvolvimento social, econômico e cultural dos povos indígenas e a sua integração nacional (OIT, 1957), tomando em consideração, para cumprir essa determinação, os valores desses povos e a procura de sua colaboração (OIT, 1957).

O que se esperava dos povos indígenas era apenas sua “colaboração” para o desenvolvimento em suas terras, por meio da ingerência e da interpretação que o governo atribuía a seus valores. Não havia a preocupação “com o ponto de vista indígena sobre os seus problemas e, claramente, [se] adotava perspectivas integracionista e assimilacionista que buscavam dissolver os povos indígenas nas sociedades nacionais” (ANTUNES, 2019, p. 34).

A Convenção 107 representava a política que vigia no século XX de desaparecimento e de dissolução do indígena com a sua “conversão em cidadãos” (FAJARDO, 2009, p. 17). Os povos indígenas eram tratados na temática de relações de trabalho e na condição de campesinos (FAJARDO, 2009, p. 20), mas não como povos indígenas com uma distintiva identidade.

Na modificação conceitual que originou a Convenção 169, o primeiro ponto que sobressai é a mudança de perspectiva de que os povos indígenas poderiam ter o controle do próprio desenvolvimento (PALOMINO, 2015, p. 133). Junto a isso, lutavam por sua identidade, para serem vistos como novos sujeitos de direitos: como habitantes das nações originárias ou como sujeitos coletivos (FAJARDO, 2009, p. 27).

Durante os procedimentos preparatórios da Convenção 169, os países concordavam que procedimentos de consulta meramente formais eram muito frágeis para permitir uma participação dos povos indígenas, de modo que, se assim adotados, os povos afetados e suas necessidades continuariam desconsiderados (PALOMINO, 2015, p. 134). Concluída a convenção, a consulta passou a ter a natureza de um mecanismo substancial de participação e não de um “requisito meramente formal” (RODRÍGUEZ, 2014, p. 43), a ser preenchido previamente a um empreendimento ou a medidas legislativas e administrativas estatais.

A principal dificuldade, não está no reconhecimento formal do direito à participação popular, mas particularmente na forma como esse direito será exercido e promovido. O exercício pleno da cidadania assume relevância central nos processos de consolidação democrática e, para além do voto e da representatividade indireta, a construção e o fortalecimento de instrumentos de participação ativa de indivíduos e grupos nas deliberações democráticas exige uma ampliação da própria noção de cidadania.

A nova cidadania requer (e até é pensada como sendo esse processo) a constituição de sujeitos sociais ativos, definindo o que eles consideram ser os seus direitos e lutando pelo seu reconhecimento. Nesse sentido, ela é uma estratégia dos não cidadãos, dos excluídos, uma cidadania «de baixo para cima». (DAGNINO, 1994, p. 105).

Até o século XIX, a autodeterminação é relacionada ao princípio das nacionalidades, prevalecendo a ideia estatalista (NOGUEIRA, 2016) que, influenciada pelo positivismo jurídico, “enfraqueceu o próprio Direito Internacional, reduzindo-o a um direito estritamente interestatal, não mais acima mas entre Estados soberanos” (CANÇADO TRINDADE, 2020, p. 29). Essa questão ganhou novos contornos com o período de descolonização no cenário internacional pós Segunda Guerra Mundial, não sem bastante controvérsia, como visto, e tornando os povos indígenas que ocupavam as terras no interior das fronteiras dos países independentes limitados às políticas integracionistas (NOGUEIRA, 2016).

Nesse contexto, a autodeterminação tornou-se não só uma questão de Estado, mas também de direitos humanos e de coletivo (NOGUEIRA, 2016), tendo como finalidade não obter uma espécie de soberania nacional ou direito de secessão, mas de ver reconhecido seu direito “a um desenvolvimento livre, recuperando os séculos em que o colonialismo tomou para si este direito” (NOGUEIRA, 2016, p. 110).

A autodeterminação para os povos indígenas é interna, permitindo-lhes resguardar sua racionalidade frente à incompatível gênese ideológica do Estado-Nação em que estão inseridos (NOGUEIRA, 2016), e garantindo-lhes a “liberdade da manifestação da vontade coletiva dos povos em decidir sobre sua forma de organização política, social, jurídica e suas relações entre si e com a natureza, com base em suas tradições e cultura” (NOGUEIRA, 2016, p. 116).

Ao defender a consulta prévia como uma forma de enraizamento da democracia participativa, estamos defendendo uma proposta de uma cidadania de baixo para cima. Em outros termos, o que estamos entendendo neste trabalho por democracia participativa não significa a anulação das funções do Congresso Nacional ou dos gestores públicos, mas o fortalecimento de processos em que grupos minoritários tenham a oportunidade de apresentar os seus pontos de vista e, se for o caso, de dizerem “não” às propostas de leis e às políticas públicas de cima pra baixo e que, por isso mesmo, repetem a lógica colonial e violam direitos humanos reconhecidos na Constituição, nos tratados e convenções internacionais e na legislação infraconstitucional.

A afirmação e a consolidação de uma proposta dialógica pautada na concepção de cidadania ativa se mostra bastante pertinente diante das justificativas que orientaram os discursos para a legitimação da escravidão e para a assimilação/destruição cultural dos povos indígenas. De mais a mais, ainda hoje os propósitos que orientaram a relação entre o invasor colonial e os povos indígenas permanecem enraizados na política, na economia e no Direito (PERUZZO, 2017, p. 2720).

Para que a participação democrática nos processos de elaboração, interpretação e aplicação do Direito estatal seja algo factível, é imprescindível que as relações assimétricas de poder sejam ao menos reduzidas. E quando falamos de relações assimétricas de poder estamos tratando de abismos tão profundos que, mais do que diferenças, consubstanciam relações absurdas de opressão. As políticas de tutela e de integração do indígena à comunhão nacional foram responsáveis não apenas pelo genocídio dos povos indígenas no Brasil, mas também por uma concepção distorcida a respeito desses povos e dos seus direitos, aprofundando ainda mais o afastamento dos indígenas do espaço público. Daí a importância da consulta prévia como instrumento que assegura aos indígenas o direito de falar por eles mesmos. Os povos indígenas sabem muito bem o que querem e não precisam de intermediários para distorcer os seus interesses nos espaços políticos, razão pela qual a consulta prévia deve ser compreendida como um instrumento que assegura aos indígenas inclusive o direito a dizer “não” diante das agressões sofridas e que se repetem ainda hoje. (PERUZZO, 2017, p. 2721 – 2722).

Outro ponto de destaque é que qualquer debate sobre a implementação da consulta deve tomar em consideração que os indígenas “historicamente sempre estiveram fora dos processos de tomada de decisão” e que é por meio dela, como instrumento de participação, que encontram uma forma de se “aproximarem, participarem, influenciarem nas decisões e acompanharem tudo antes que as coisas aconteçam” (YAMADA, OLIVEIRA, 2013, p. 13).

Não à toa, a Convenção 169 da OIT sempre foi vista como normativa com grandes desafios de implementação (FAJARDO, 2009, p. 22). A tendência é que, no processo de consulta, os povos indígenas devem não só ter acesso aos estudos de impactos fornecidos pelo governo, mas também ter a oportunidade de “apresentar suas próprias análises acerca dos impactos das medidas sob consulta” (YAMADA, OLIVEIRA, 2013, p. 17).

Deste modo, pode se entender que e a consulta aos povos indígenas representa um instrumento que permite o diálogo entre duas perspectivas distintas na resolução de uma mesma questão. Quando não se tem a preocupação em ouvir as populações indígenas envolvidas, há uma relação em que “de um lado, parecem estar os ‘civilizados’ e, de outro, os ‘bárbaros’ ou ‘selvagens’” (BALDI, 2008, p. 1). A questão indígena, então, acaba por estar inserida em críticas que “reatualizam o imaginário político-social que ainda associa índio a incapacidade civil, cooptação, manipulação e necessidade de tutela, num estado de ‘menoridade’, para qual somente podem ser ‘objetos de estudo’, nunca ‘sujeitos de direito’” (BALDI, 2008, p.1). Nesse cenário, além da correta implementação do direito de consulta, e respeito aos seus requisitos essenciais, deve-se tomar em consideração também como a arena de comunicação entre as partes é desigual e permeada por um campo político e uma estrutura de anos de dominação e distância com a organização social hegemônica (MARÉS, 2019, p. 45).

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A forma que se deu a colonização da América reflete diretamente e acarreta diversas consequências nos dias atuais. Com o colonialismo criou-se uma classificação e diferenciação entre conquistadores e conquistados, que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder na América.

Sendo assim, as relações sociais que foram fundadas sobre esse prisma produziram na América identidades sociais. As desigualdades sociais e de acesso são consequências do colonialismo e refletem diretamente na participação democratica.

Com este trabalho se pretendeu demonstrar que não só se deve lutar pela implementação efetiva do direito à consulta aos povos indígenas, mas por uma implementação de um direito de participação que leve em conta a necessidade de equilibrar o peso atribuído às expressões de ambas as partes participantes no procedimento e dê possibilidade de que a voz desses povos serem verdadeiramente ouvidas, para quem sabe, possibilitarem guiar novas escolhas para o que buscamos no mundo enquanto sociedade. Num cenário mais elucidativo, essas escolhas podem dizer respeito a opções econômico-desenvolvimentistas ou ambientalmente sustentáveis.

Nesse cenário, o direito à consulta se mostra não só como produto da luta histórica desses povos, como também um mecanismo, agora institucionalizado e reconhecido, ao menos normativamente pelo Estado, dando, assim, a oportunidade para que os povos indígenas possam expressar-se, em seu direito de participar, no campo político dessas forças simbólicas de dominação.

 

REFERÊNCIAS

 

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[1] Mestre em Proteção dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Itaúna-MG. Pós-graduada em direito público e privado. Bacharel em Direito pela Faculdade Dom Hélder Câmara (ESDHC). E-mail: brantbambirra@gmail.com. Lattes:  http://lattes.cnpq.br/7810074408710555. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4267-6175.

[2] Pós-Doutor em Direito pela UNIME, Itália. Professor da Graduação e do PPGD em Direito da Universidade de Itaúna (UIT) e das Faculdades Santo Agostinho de Sete Lagoas (FASASETE-AFYA). E-mail: deilton.ribeiro@terra.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1342540205762285. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-7268-8009.

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