Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente

Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente
RIDCA - Edición Nº3 - Derecho Ambiental

Mario Peña Chacón. Director

15 de julio de 2023

Para além do antropocentrismo: repensando os Direitos Humanos em um contexto de meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Más allá del antropocentrismo: Repensar los Derechos Humanos en el contexto de un medio ambiente ecológicamente equilibrado

Autor. Deilton Ribeiro Brasil. Brasil

Deilton Ribeiro Brasil [1]

 

RESUMO:

Esta pesquisa tem como objetivo explorar as implicações do antropocentrismo na concepção dos direitos humanos e propor uma reflexão sobre a necessidade de repensar essa abordagem em um contexto de meio ambiente ecologicamente equilibrado. A problematização se baseia na predominância da visão centrada exclusivamente no ser humano, que tem levado à exploração desenfreada dos recursos naturais, degradação ambiental e perda de biodiversidade. A hipótese de pesquisa é que repensar os direitos humanos nesse contexto requer uma abordagem holística e ecocêntrica, considerando a interconexão e interdependência de todos os elementos do ecossistema. Para investigar essa questão, adotou-se uma abordagem interdisciplinar, utilizando-se o método hipotético-dedutivo e como procedimentos metodológicos a análise documental de tratados internacionais, declarações de direitos humanos e estudos acadêmicos. Os resultados destacam a necessidade de superar o antropocentrismo, reconhecendo os direitos da natureza, a ética ambiental e a interdependência como elementos fundamentais para garantir uma sustentabilidade genuína e a coexistência harmônica de todas as formas de vida. Propõe-se a inclusão de uma perspectiva ecocêntrica nos discursos e práticas dos direitos humanos, visando um equilíbrio e respeito entre seres humanos, outras espécies e o meio ambiente.

 

PALAVRAS-CHAVE: Antropocentrismo; Direitos humanos; Meio ambiente, Sustentabilidade; Ecocentrismo; Interdependência

 

 

  1. INTRODUÇÃO.-

A relação entre os direitos humanos e o meio ambiente tem se tornado um tema de crescente relevância e debate acadêmico. Em um contexto em que a sustentabilidade e a preservação ambiental são desafios urgentes, surge a necessidade de reavaliar a concepção e a aplicação dos direitos humanos nesse âmbito. Compreender que um meio ambiente ecologicamente equilibrado é crucial não apenas para o bem-estar das gerações presentes, mas também para as futuras, implica reconhecer a interdependência entre os seres humanos e o ambiente natural.

A visão tradicional dos direitos humanos tem se concentrado principalmente nos aspectos sociais, políticos e econômicos, muitas vezes relegando a proteção do meio ambiente a um segundo plano. No entanto, a compreensão de que os seres humanos são parte integrante da natureza e que dependem dos serviços ecossistêmicos para sua própria existência tem ganhado destaque. Isso levanta questionamentos sobre a necessidade de uma abordagem mais abrangente, que incorpore a dimensão ambiental nos direitos humanos e promova um equilíbrio entre as necessidades humanas e a preservação do meio ambiente. Essa reflexão abre espaço para explorar novas formas de proteger e promover os direitos humanos em um mundo cada vez mais consciente da importância da sustentabilidade ambiental.

O artigo é dividido em seis seções. A primeira seção é a introdução com destaque para a metodologia adotada no desenvolvimento da pesquisa. A segunda seção é referente aos enfrentamentos da sociedade de risco na concretude da sustentabilidade e do meio ambiente saudável. A terceira parte coloca em relevo a questão dos direitos humanos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A quarta seção é referente a base jurídica do meio ambiente ecologicamente equilibrado como premissa do Estado de Direito Ambiental. Por último, nas seções cinco e seis serão apresentadas as considerações sobre a temática colocada em relevo ao longo do trabalho e as referências.

 O presente trabalho apresenta como problemática a predominância da visão centrada exclusivamente no ser humano, que tem levado à exploração desenfreada dos recursos naturais, degradação ambiental e perda de biodiversidade. A hipótese de pesquisa é que repensar os direitos humanos nesse contexto requer uma abordagem holística e ecocêntrica, considerando a interconexão e interdependência de todos os elementos do ecossistema.

O método utilizado para a realização do trabalho foi hipotético-dedutivo com a abordagem de categorias consideradas fundamentais para o desenvolvimento do tema sobre os direitos humanos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Os procedimentos técnicos utilizados na pesquisa para coleta de dados foram a pesquisa bibliográfica, a doutrinária e a documental. O levantamento bibliográfico forneceu as bases teóricas e doutrinárias a partir de livros e textos de autores de referência, tanto nacionais como estrangeiros. Enquanto o enquadramento bibliográfico utiliza-se da fundamentação dos autores sobre um assunto, o documental articula materiais que não receberam ainda um devido tratamento analítico. A fonte primeira da pesquisa é a bibliográfica que instruiu a análise da legislação constitucional e a infraconstitucional, bem como a doutrina que informa os conceitos de ordem dogmática.

2. OS ENFRENTAMENTOS DA SOCIEDADE DE RISCO NA CONCRETUDE DA SUSTENTABILIDADE E DO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL.-

Com a aplicação do ideário neoliberal, experimentou-se o crescimento explosivo do mercado mundial, através da atuação das empresas multinacionais; a diminuição da capacidade reguladora dos Estados sobre a economia; o enfraquecimento dos mecanismos nacionais de regulação dos conflitos entre capital e trabalho; a precarização das condições de trabalho e do nível salarial; o aumento da industrialização dependente dos países do terceiro mundo em função da flexibilização, automação dos processos fabris e melhorias nas condições de transporte e telecomunicações; a emergência de processos de desindustrialização e subcontratação; a crescente diferenciação dos produtos de consumo, possibilitando a particularização dos gostos; e a possibilidade de reprodução do capital em decorrência da mercadorização e da digitalização da comunicação (Santos, 2005, p. 87).

A globalização veio acompanhada e interage com outras modificações na ordem mundial que lhe são simultâneas, como, por exemplo: o aumento das desigualdades entre países ricos e pobres e entre ricos e pobres de um mesmo país; o aumento demográfico; a catástrofe ambiental; os conflitos étnicos; a grande leva de migrações; a proliferação de guerras civis; a globalização do crime organizado; a exigência da democracia formal como condição política imposta para a viabilização da assistência internacional (Santos, 2005, 24).

A sociedade de risco global corresponde à sociedade de risco, pensada até as suas últimas consequências. O seu princípio axial, seus desafios, são os perigos produzidos pela civilização que não podem ser delimitados socialmente nem no espaço nem no tempo. Nela, as condições e princípios básicos da modernidade industrial – antagonismos de classe, estatalidade nacional, assim como as imagens da racionalidade e do controle linear, tecnoeconômico são eludidas e anuladas (Beck, 2006, p. 29).

A sociedade de risco global é marcada pela interrelação entre dois conflitos, duas lógicas de distribuição; a distribuição de bens e males enquanto que na sociedade industrial os embates se travavam em torno da distribuição das riquezas advindas da produção de bens, na sociedade global do risco, procura-se equacionar os efeitos globais, dentre os quais os impingidos ao meio ambiente e às sociedades periféricas, da radicalização da produção industrial, baseada na globalização do capital; pela debilitação dos fundamentos do cálculo do risco, haja vista a impossibilidade de serem compensados, financeiramente, danos decorrentes do agravamento do nível de desemprego, do subemprego e da pobreza; pela debilitação das burocracias e do domínio da economia clássica e redefinição das fronteiras e frentes de batalha da política contemporânea em face do desencadeamento de uma dinâmica de mudanças culturais e políticas em função da explosividade social dos riscos financeiros globais; pelo colapso da instituição Estado-nação; pela emergência do conceito de globalização responsável como tema público e político de alcance mundial em virtude da reflexibilidade causada pelo risco; e pelo surgimento de novas opções: protecionismo nacional e regional, instituições transnacionais e democratização (Beck, 2006, p. 12).

Assim, a ascensão da sociedade de risco global deve ser entendida dentro de um contexto mais amplo, de uma sociedade complexa, onde atuam atores específicos em conflito constante com o objetivo de estabelecerem um monopólio sobre o tipo de capital que aí se faz efetivo a autoridade cultural no campo artístico, a autoridade científica no campo científico, a autoridade sacerdotal no campo religioso e assim sucessivamente (Bourdieu & Wacquant, 1992).

Para Guivant (2000, p. 96), o conceito de sociedade de risco se cruza diretamente com o de globalização, ou seja, os riscos são democráticos, afetando nações e classes sociais sem respeitar nenhuma fronteira. Sendo que os processos delineados a partir dessas transformações são ambíguos, coexistindo, em um mesmo cenário, maior pobreza em massa, crescimento de nacionalismo, fundamentalismo religiosos, crises econômicas, possíveis guerras e catástrofes ecológicas e tecnológicas, e espaços no planeta onde há maior riqueza, tecnificação rápida e alta segurança no emprego.

Nesse contexto, na sociedade da alta modernidade os riscos emergemcomo produto do próprio desenvolvimento da ciência e da técnica, com características específicas: são globais, escapam à percepção e podem ser localizados na esfera das fórmulas físicas e químicas e, por tudo isto, é difícil fugir deles. São riscos cujas consequências, emgeral de alta gravidade, são desconhecidas em longo prazo e não podemser avaliadas com precisão (Guivant, 2000, p. 287).

Segundo Juarez Freitas, o conceito de desenvolvimento sustentável é multidimensional e não se relaciona a um princípio meramente abstrato, elusivo ou de observância protelável. Dessa maneira, desenvolvimento sustentável consiste em um princípio

 

que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar (Freitas, 2016, p. 52).

 

Partindo de uma perspectiva multifatorial, o desenvolvimento sustentável trata de conciliar crescimento econômico e a conservação ambiental, atendendo às necessidades do presente sem que isso comprometa a existência daqueles que ainda estão por vir. Nesse sentido, a obtenção de um modelo sustentável de desenvolvimento pressupõe uma “racionalidade dialógica, interdisciplinar, criativa, antecipatória, mediadora de consequências (diretas e indiretas) e aberta” (Freitas, 2016, p. 31).

Cada vez mais os estudiosos do direito ao redor do mundo têm estado atentos ao papel que pode ser exercido pelo sistema jurídico na tentativa de dar respostas às questões ambientais mais complexas. No Brasil esse fenômeno não é diferente. Conforme se verifica, o modelo de desenvolvimento sustentávelencampado pela Constituição Federal de 1988, notadamente em seu artigo 225, prevê que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado cabendo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Ainda referente ao termo sustentabilidade a melhor percepção é no sentido de ser um desenvolvimento capaz de satisfazer as necessidades das gerações presentes sem diminuir as chances das gerações futuras (CAPRA, 2006, p. 24|). Essa dependência mútua entre todos os organismos vitais é a natureza de todas as relações ecológicas, pois o comportamento de cada membro vivo na relação depende do comportamento de muitos outros, sendo todos responsáveis pelo sucesso da comunidade (Capra, 2006, pp. 231-232).

Também para Machado (2013, p. 76) a soma das locuções desenvolvimento e sustentável estabelece a integração entre proteção ambiental, desenvolvimento econômico, exploração equitativa e racional dos elementos ambientais e preservação da natureza para o benefício das sociedades atuais e vindouras.

A dinamicidade das sociedades hodiernas exige a adoção de um modelo eficiente de sustentabilidade, imputando aos Estados e à sociedade o dever de zelar pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações, agindo de maneira ativa no sentido de implementar e exigir a implementação de políticas públicas adequadas às diferentes situações que se apresentam no horizonte da vida social.

Didaticamente, o conceito de desenvolvimento sustentável descreve um processo socioeconômico ecologicamente sustentável e socialmente justo que invoca princípios de equidade intra e intergeracional. Isso induz a um novo modelo para o uso dos recursos naturais, limitando a degradação de ambientes naturais e culturais, estabelecendo uma base diferenciada para a atuação do Estado. Também muda o foco sobre a hegemônica necessidade de desenvolvimento econômico (Assunção & Silva, 2016. p. 25).

Neste sentido, não se pode dissociar políticas públicas da noção de sustentabilidade. Cavalcanti (1999) analisa a necessidade de uma orientação das políticas públicas para a sustentabilidade que possibilite o reconhecimento da limitação ecológica fundamental dos recursos, sem os quais nenhuma atividade humana pode se realizar. Segundo ele, isto requer uma utilização cuidadosa da base biofísica e ambiental da economia, bem como uma reorientação do modo que os recursos da natureza são empregados e na maneira como os correspondentes benefícios são compartilhados.

Cavalcanti (1999) diz ainda que o alcance de políticas públicas desse tipo depende do engajamento de todos os setores da sociedade e, sob este aspecto, de pelo menos três parâmetros que devem ser considerados para fins de reforma institucional: educação, gestão participativa e diálogo entre as partes envolvidas. Para a concretização de uma política pública sustentável, é primordial uma inter-relação entre justiça social, qualidade de vida, equilíbrio ambiental e a necessidade de desenvolvimento com respeito à capacidade de suporte (Cavalcanti, 1999).

A encíclica Laudato Si publicada pelo Papa Francisco, datada de 24 de maio de 2015, também denominada Encíclica Verde é um documento de extrema importância para a mudança de paradigma no contexto da sustentabilidade e persecução de um meio ambiente ecologicamente equilibrado tendo em vista a sua grande força político-social.

Na referida Encíclica é reconhecido o valor intrínseco da natureza, chamando-a de Casa Comumestabelecendo a ligação da continuidade da vida do ser humano à necessidade de preservação e conservação ambiental, e faz um apelo para que todos salvem o Planeta, criticando o que se chama de antropocentrismo moderno ou antropocentrismo desordenado, mentalidade responsável pela degradação ambiental.

Em outras palavras, o Papa Francisco trata justamente do que a ecologia profunda vem alertando há tempos, isto é, do mencionado processo de desnaturalização que o homem sofreu e que ainda padece com o passar do tempo. O documento ainda preceitua que o antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente sem se importar com o que possa suceder a ela. Assim debilita-se o valor intrínseco do mundo (Papa Francisco, 2015, p. 90).

Uma das preocupações do Pontífice é referente a poluição causada pelo homem. Ela ocorre devido aos resíduos poluentes gerados pelas várias atividades, tais como as da indústria, do comércio, da atividade agrícola e do homem comum: estes problemas estão intimamente ligados à cultura do descarte, que afeta tanto os seres humanos excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em lixo (Papa Francisco, 2015, p. 20).

O texto também conclama a humanidade a mudar de posição na busca de um desenvolvimento sustentável e integral que ocorre através de uma solidariedade universal que deverá passar obrigatoriamente por algumas fases tais como: a crise ecológica atual e as pesquisas mais recentes; a tradição judaico-cristã no debate ecológico; as causas do problema ecológico; uma visão ecológica; as ações individuais e da política internacional frente ao problema debatido; educação ambiental à luz da espiritualidade ecológica cristã (Papa Francisco, 2015, p. 12).

Nesse contexto, a visão teocêntrica também aparece em suas considerações, já que a responsabilidade do homem de salvaguardar a terra, como é possível verificar em várias passagens das Escrituras que ilustram o fato de Deus ser o dono de toda a criação, e o homem, como ser dotado de inteligência, deve exercer tal responsabilidade. Ademais, as outras criaturas, também têm um valor em si mesmas, fazendo com que não sejam tomadas como meros meios de satisfação humana. O homem tem um papel fundamental de cuidar dos outros indivíduos e de todos os outros seres criados: quando todas estas relações são negligenciadas, quando a justiça deixa de habitar na terra, a Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo (Papa Francisco, 2015, p. 57).

Sobre a questão ambiental a Encíclica do Papa Francisco preceitua que não deve jamais reduzir-se à questão financeira. Em sua visão, aquele que mira somente o lucro não se preocupa com o ambiente e com os homens. Sua sugestão, levando-se em conta que os problemas ambientais são globais, é a de que chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo em algumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável em outras partes. O progresso, por sua vez, necessita levar o bem-estar aos indivíduos: um desenvolvimento tecnológico e econômico, que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso (Papara Francisco, 2015, p. 148).

A Encíclica é finalizada de maneira a buscar reformas no pensamento cristão clássico de que o homem é dono do mundo, estabelecendo a humanidade como tutora da natureza, pois a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável (Papa Francisco, 2015, p. 91).

E também faz apelo a todos para tomar a nosso cargo esta casa que nos foi confiada com o propósito da manutenção da própria raça humana (Papara Francisco, 2015, 183).

 

 

 

3. OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO.- 

A Constituição Federal de 1988 no seu artigo 225, caput, e artigo 5º parágrafo 2º atribuiu ao direito ao ambiente o status de direito fundamental do individuo e da coletividade, bem como consagrou a proteção ambiental como um dos objetivos ou tarefas fundamentais do Estado Socioambiental de Direito Brasileiro, o que conduz ao reconhecimento, pela ordem constitucional, da dupla funcionalidade da proteção ambiental no ordenamento jurídico brasileiro, a qual toma a forma simultaneamente de um objeto e tarefa estatal e de um direito (e dever) fundamental do individuo e da coletividade, implicando todo um complexo de direitos e deveres fundamentais de cunho ecológico. A partir das considerações, resulta caracterizada a obrigação do Estado de adotar medidas legislativas e administrativas atinentes à tutela ecológica, capazes de assegurar o desfrute adequado do direito fundamental em questão. Assim, uma vez que a proteção do ambiente é alçada ao status constitucional de direito fundamental (além de tarefa e dever do Estado e da sociedade) e o desfrute da qualidade ambiental passa a ser identificado como elemento indispensável ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, qualquer “óbice’ que interfira na concretização do direito em questão deve ser afastado pelo Estado, seja tal conduta (ou omissão) obra de particulares, seja ela oriunda do próprio Poder Público (Sarlet & Fensterseifer, 2014, pp. 181-182).

Melhor explicando, o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 estabelece que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem de uso comum do povo. Essa determinação constitucional reflete um direito «de cada pessoa, mas não só dela, sendo ao mesmo tempo ‘transindividual’. Por isso o meio ambiente entra na categoria de interesse difuso, não se esgotando numa só pessoa, mas se espraiando para uma coletividade indeterminada» (Machado, 2006, p. 116).

Duas leituras são possíveis deste artigo: a primeira, refletindo uma ética antropocêntrica, entende o “todos” o “povo” e as “presentes e futuras gerações” como apenas os seres humanos, ao elemento humano povo do Estado moderno; a outra, refletindo a ética biocêntrica presente no Estado de Direito Ambiental, entende estas expressões como incluindo todas as formas de vida, o humano, o social e o cultural, juntamente com a natureza em seu conjunto, elementos bióticos e abióticos, e os animais não humanos. Esta leitura não representa algo absurdo e forçado do contexto da Constituição Federal brasileira, mas uma compreensão perfeitamente possível, em virtude dos deveres de proteção expostos no mesmo artigo e da sistemática constitucional que inclui o elemento meio ambiente em diversos outros dispositivos. Além disso, o diálogo e o aprendizado constitucional com as constituições do Equador e da Bolívia demonstram a possibilidade desta compreensão (Silveira & Leite, 2016, p. 98).

Dessa forma, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, empregado também em outros pontos da Constituição Federal, não apresenta nenhuma necessidade de conexão aos elementos vivos não humanos. Entretanto é importante registrar que “quem sabe um dia se verá no ‘todos’ do artigo 225, caput, como uma categoria mais ampla e menos solitária do que apenas os próprios seres humanos”, vez que essa negação não implica na negação de reconhecimento de seu valor intrínseco, embora não tenha o direito ambiental logrado superar o antropocentrismo reducionista (Benjamin, 2012, pp. 123-133).

Assim, de acordo com o que preconiza a Constituição Federal em seu artigo 5º, parágrafo 2º, os direitos fundamentais possuem cunho principiológico de aplicabilidade direta e imediata. Neste caso, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deve, ou deveria ser concretizado por meio da criação e da execução de políticas públicas eficazes, que são prioridades cogentes de Estado Constitucional (Freitas, 2016, p. 56). É importante frisar que essas políticas e programas demonstrem resultados justos, não mera aptidão para produzir efeitos jurídicos (Freitas, 2016, p. 52).

Ademais o mínimo existencial é um conjunto de direitos materiais, indispensável à existência humana e fundamental para uma vida digna e saudável, cuja obrigação de prestar é do Estado. Trata-se, portanto, do justo acesso da população a todos os direitos fundamentais, sobretudo os consagrados pela Constituição Federal de 1988, incluídos nesse conceito, os direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

4. A BASE JURÍDICA DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO COMO PREMISSA DO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL.-

 

O Estado de Direito Ambiental é uma teoria que surgiu como crítica à situação de degradação atual e às teorias tradicionais do Estado moderno, que não se coadunam mais com os novos desafios enfrentados; como uma nova ética institucional, incorporando ao Estado a responsabilidade com o meio ambiente e a proteção de todas as formas de vida, por meio de deveres específicos; é uma mudança de racionalidade e de atitudes, buscando a conscientização por meio do empoderamento e da institucionalização de políticas de respeito à natureza. Logo, o Estado de Direito Ambiental, ao incluir em sua proteção todas as formas de vida e não mais somente a humana, deixando o caráter antropocêntrico que guiava o Estado moderno, estende e deixa mais complexos seus objetivos, buscando soluções para os impactos negativos da ação humana sobre o ambiente (Silveira & Leite, 2016, p. 94).

Para tanto, surge uma compreensão de que a proteção dos sistemas ecológicos é essencial para a redução de riscos existenciais e para a garantia da qualidade de vida, vinculada à conscientização do valor intrínseco da natureza e do respeito por todas as formas de vida, independentemente de sua utilidade ou da valoração humana atribuída, na adoção de uma ética biocêntrica (Silveira & Leite, 2016, p. 94).

Dessa forma, ao analisar o conteúdo jurídico ambiental previsto na Constituição Federal de 1988, observa-se que a mesma, apesar de ser antropocêntrica em sua essência, tem o seu alicerce na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) e na prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, inciso II), tendo como aspecto principal da preservação ambiental a manutenção da vida do homem, trazendo diversos dispositivos ecocêntricos que acabam por possibilitar a expansão da proteção constitucional do ambiente para além do homem. Isto significa que pela análise textual dos artigos constitucionais ambientais percebe-se que estes se destinam não só ao bem-estar e proteção do homem, mas sim da vida em geral (Marcon & Santos, 2016, pp. 289-290).

Nesse contexto, o artigo 23 da Constituição Federaltrouxe como competência material comum a todos os Entes Federativos, em seus incisos VI e VII, a proteção do meio ambiente e o combate à poluição em qualquer de suas formas e a preservação de florestas, a fauna e a flora. De igual forma, o artigo 24, que trata das competências concorrentes legislativas da União, Estados e Distrito Federal na elaboração de leis e atos normativos sobre fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição. Por seu turno, o artigo 225 da Constituição também caminha neste sentido ao buscar efetivar a proteção natural e o equilíbrio ecológico, o constituinte originário se prestou a indicar qual o caminho a ser percorrido pelo Poder Público, listando em seu §1º do mesmo artigo uma série de incumbências a serem realizadas por todas as esferas de governo.Neste rol de obrigações consta em seu inciso VII o dever de proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.De igual forma, o inciso V preceitua o dever do Poder Público de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (Marcon & Santos, 2016, pp. 289-290).

A Constituição Federal ao proteger juridicamente os ecossistemas como um todo, levou em consideração tanto o seu caráter instrumental por se tratar de ferramenta necessária à realização da vida e da qualidade de vida dos humanos quanto por seu valor intrínseco por reconhecer que a natureza e as demais formas vivas possuem um valor inerente independente.  A tendência atual aponta para um panorama menos antropocêntrico, que passa a tutelar o meio ambiente, não apenas em virtude de sua utilidade econômica, mas em função de sua própria capacidade funcional (Bahia, 2008, p. 402).

Portanto, o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 adota a ideia holística de se entender o meio ambiente a partir de uma visão mais ampla – não mais restrito a um simples conjunto de elementos naturais. Ele passa a ser visto como não mais um objeto de valor isolado ou meramente utilitarista e, sim, como algo necessário para se atingir a própria qualidade de vida. A natureza não se torna um sujeito de direitos; o homem, que assume tal condição, entende que ela é um meio de sobrevivência e, por isso, deve ser preservada em uma relação constante de equilíbrio com o interesse comum da coletividade e do Estado (Bruzaca & Sales, 2016, p. 40).

Abandona-se a posição individualista do homem, pois o Direito Ambiental brasileiro passa a adotar uma postura na qual o homem possui uma nova responsabilidade face à natureza. Neste compasso, além da proteção do meio ambiente, simultaneamente, visa-se a tutelar o mesmo para garantir o equilíbrio ecológico (Leite & Ayala, 2010, p. 78).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.-

O artigo 225 da Constituição Federal de 1988 impõe uma orientação de todo o ordenamento infraconstitucional, ficando patenteado o reconhecimento do direito-dever ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a obrigação dos poderes públicos e da coletividade de defendê-lo e preservá-lo e a previsão de sanções para as condutas ou atividades lesivas. A preservação do meio ambiente passa a ser, portanto, a base em que se assenta a política econômica e social, pois, uma vez inseridas em um sistema constitucional, as normas relativas a outros ramos jurídicos, que se relacionam com o amplo conceito de meio ambiente, não podem ser aplicadas sem levar em conta as normas ambientais que impregnam a ideologia constitucional (Marchesan, Steigleder & Cappeli, 2005, p. 23).

Quanto à sustentabilidade, o presente estudo demonstra sua importância e o status de direitos fundamentais, bem como a necessidade de sua efetivação, tendo em vista que irá possibilitar a concretização de outros direitos fundamentais a ele associado, tal como o direito à vida, à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A preocupação com a qualidade de vida está diretamente interligada com um desenvolvimento sustentável sob pena de comprometimento de direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana. Também foi possível constatar que a sociedade contemporânea movida pelo progresso econômico não tem uma preocupação com os custos benefícios de suas ações degradantes provocando a degradação do meio ambiente, o que por sua vez compromete sua sustentabilidade e coloca em risco a qualidade de vida não só das atuais, mas também das futuras gerações.

  

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Citas

[1]Pós-Doutor em Direito pela Università Degli Studi di Messina, Itália. Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho/Rio de Janeiro. Professor da Graduação e do PPGD – Mestrado e Doutorado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna (UIT) e das Faculdades Santo Agostinho (FASASETE-AFYA). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7268-8009. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1342540205762285. E-mail: deilton.ribeiro@terra.com.br

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