Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente

Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente
RIDCA - Edición Nº4 - Filosofía de Derecho

Carlos Vera Bordaberry Zalazar. Director

20 de diciembre de 2023

Kafka, a ficção no direito e as (possíveis) solução de conflitos sociais.
Kafka, la ficción en el derecho y la (posible) solución de los conflictos sociales

Autor. Artur Antonio da Rocha. Brasil

Por Artur Antonio da Rocha[1]

RESUMO

Hans Vaihinger, filosofo alemão, traduzido e publicado no Brasil em 2011, nos apresenta a teoria da ficção e da presunção jurídica introduzindo a partícula “como se”, que é utilizada pela matemática, psicologia, literatura e direito. Vaihinger nos demonstra o quanto o campo de aplicação na práxis jurídica pode ser profícuo. Mas é na jurisprudência, segundo Vaihinger, que a teoria da ficção encontra seu campo mais conhecido, e isso é trazido para o campo do direito dos países de tradição romano-germânica. Wolfgang Iser, filosofo alemão, traz importante contribuição na análise da partícula do “como se” de Vaihinger. O presente artigo pretende fazer relação entre a teoria da ficção e sua aplicação no direito brasileiro a partir de parte da literatura de Kafka. Análises de obras de Franz Kafka já foram realizadas por vários campos do saber científico, jornalístico e até mesmo pelo campo do saber jurídico, e desafiam os críticos literários e historiadores, pois restam inconclusas, permanecendo, assim, abertas para novas discussões, tal como o presente estudo. O artigo ajuda a compreender o sistema multiportas, uma outra ficção jurídica, à luz da teoria de Vaihinger, de modo a explicar de que forma as obras de Kafka, por serem atemporais, podem ter relação com a solução dos conflitos sociais modernos, nos quais terceiros podem atuar como se fossem magistrados, reduzindo o tempo e o custo de um processo judicial.

Palavras-chave:

Hans Vaihinger, ficção, Franz Kafka, conflitos sociais judicializados, sistema multiportas

ABSTRACT:

Hans Vaihinger, German philosopher, translated and published in Brazil in 2011, introduces us to the theory of fiction and legal presumption by introducing the particle “as if”, which is used by mathematics, psychology, literature and law. Vaihinger demonstrates how the field of application in legal practice can be fruitful. But it is in jurisprudence, according to Vaihinger, that the theory of fiction finds its best known field, and this is brought to the field of law in countries with a Roman-Germanic tradition. Wolfgang Iser, German philosopher, makes an important contribution to the analysis of Vaihinger’s “as if” particle. This article intends to make a connection between the theory of fiction and its application in Brazilian law based on part of Kafka’s literature. Analyzes of works by Franz Kafka have already been carried out by various fields of scientific and journalistic knowledge, and even by the field of legal knowledge, and challenge literary critics and historians, as they remain unfinished, thus remaining open to new discussions, such as the present study. The article helps to understand the multidoor system, another legal fiction, in the light of Vaihinger’s theory, in order to explain how Kafka’s works, being timeless, can be related to the solution of modern social conflicts, in which third parties can act as if they were magistrates, reducing the time and cost of a court case.

Keywords:

Hans Vaihinger, fiction, Franz Kafka, judicialized social conflicts, multidoor system

1.     INTRODUÇÃO

VAIHINGER (2011), ao estudar as ficções jurídicas, afirmou que o termo ficção é mais conhecido na jurisprudência do que em qualquer outra área de conhecimento. E complementa, afirmando que só quem está familiarizado com a jurisprudência pode avaliar o artifício utilizado pelos julgadores para a solução de problemas não contemplados pelas hipóteses legais. E, na sequência, nos perguntamos como a jurisprudência pode se apropriar da teoria do como se, partícula presente e estudada na obra de Vaihinger, para solucionar problemas oriundos de conflitos sociais ao Poder Judiciário a ela submetidos?

          De fato, a teoria do como se é amplamente utilizada no campo do direito principalmente quando usamos a fórmula “onde há a mesma razão, aplica-se o mesmo direito”, ainda que alguns não se dêem conta da teoria sistematizada por Vaihinger. A explicação dada pelo autor vem ao encontro do que os juristas orientam em suas obras. Além disso, operadores do direito, ao começarem a atuar, possuem consciência de que a lei não consegue enquadrar todos os casos singulares que se lhes apresentam, daí as buscas por analogia, meras ficções visando reequilibrar a balança da justiça. Além da questão da interpretação (que no Direito tem função particular, ou seja, trata-se da aplicação do direito ao caso concreto, pela via da analogia, mas também pelos princípios gerais do direito, pelos costumes), é preciso utilizar a regra geral a ser aplicada em um caso individualizado ou singular, no dizer de VAIHINGER (2011), que assim se manifesta na página 157 sobre o procedimento: “O mecanismo psicológico de sua aplicação consiste em que um caso singular é subsumido em uma construção de representações não destinada a ele, ou seja, a percepção é meramente analógica”.

          A jurisprudência citada por Vaihinger é uma das fontes do direito, ou seja, são classificadas pela importância na interpretação de um caso sob a análise jurídica. O Estado, através do seu Poder Legislativo, cria as leis, fictio iuris, no dizer de Vaihinger.. O Brasil, por ser um país de civil law, ao contrário dos países anglo saxões, tem a lei como fonte primária. Mas atualmente algumas súmulas são chamadas de vinculantes e funcionam como base do direito, e essas são geradas através da jurisprudência, que é a consolidação do mesmo tipo de decisão que podem ser aplicadas aos novos casos colocados para serem julgados novamente.

           Nesse sentido, a jurisprudência compreende julgamentos reiterados sobre um mesmo tema, que geram um precedente, isto é, uma decisão jurídica que pode servir como parâmetro para outros casos. E esse precedente se torna uma jurisprudência que poderá orientar um operador de direito quando este for promover alguma demanda. As discussões não se esgotam com a decisão de um juiz de primeiro grau e podem avançar para a segunda e até para a “terceira instância”, para finalmente termos uma síntese. Vaihinger tem, na sua obra, na página 157, nos apresenta uma explicação bastante oportuna sobre o método de criação da jurisprudência: “Em nenhum outro lugar, o termo ficção é mais conhecido do que na jurisprudência, onde representa tema preferido de discussão. Em princípio, são inteiramente idênticas às ficções anteriores”.

VAIHINGER (2011) prossegue na página 157, demonstrando profundo domínio do tema, ao esclarecer como a teoria da ficção e a aplicação da partícula do como se é utilizada pelos operadores do direito. O autor nos brinda com a explicação de como essa técnica é utilizada na prática jurídica:

A base do método é a seguinte: uma vez que as leis não podem enquadrar todos os casos singulares em suas fórmulas, contemplam-se alguns casos especiais de natureza não comum como se estes pertencessem àquelas. Ou, em razão de um interesse prático qualquer, subsume-se um caso singular em um conceito geral, ao qual, no fundo, não pertence.   

          Como podemos depreender da leitura desse trecho, Vaihinger metodologicamente utiliza a comparação para esclarecer a forma como se origina a jurisprudência e (literalmente) demonstrar a importância da aplicação da teoria da ficção na prática jurídica. E acrescenta: “quem está familiarizado com o método da jurisprudência pode avaliar a importância desse artificio para a prática jurídica”.     

          Aqui, é pertinente pensar sob o seguinte viés jurídico: a jurisprudência é importante ferramenta jurídica e não só pode ser utilizada em demandas propostas perante o Poder Judiciário do Estado, como também podemos utilizá-la em situações em que o julgamento venha a ser realizado através de um sistema denominado pelo campo da ciência processual jurídica como multiportas, no qual podemos ter outro tipo de solução de conflitos sociais, sem a necessidade da presença de um representante do Estado.

2.     OS CONFLITOS SOCIAIS MODERNOS E OS CONFRONTOS NA OBRA DE KAFKA:

Atualmente temos uma demanda reprimida da sociedade humana em geral, mas também da sociedade brasileira em particular, por soluções de conflitos em variadas áreas, como civil, trabalhista, comercial, ambiental, propriedade intelectual, dentre outras. Somos desfavoráveis à ideia de que qualquer problema social seja judicializado, por entendermos que há sempre a possibilidade, não somente da autocomposição, isto é, quando as partes chegam por si só, a um acordo, como da existência de uma solução administrativa para um conflito.

Do mesmo modo, não consideramos oportuno discutir qualquer decisão transitada em julgada, ou melhor, não consideramos oportuno socializar decisões judiciais já transitada em julgado, ou seja, que não podem ser modificadas. Até porque, prevalece na ciência jurídica o entendimento de que a decisão judicial transitada em julgado não pode ser relativizada, e há poucas possibilidades de se reverter uma decisão judicial. Além de existirem poucas hipóteses de se relativizar uma decisão judicial, é preciso cumprir certos requisitos, inclusive a necessidade de se prestar caução em dinheiro, face a eventuais prejuízos que poderão advir de se revisitar aquilo que já foi decidido de forma imparcial e dentro do princípio da ampla defesa e do contraditório.

Esse princípio é prestigiado pelas nações civilizadas, tendo em vista que decorre dos tratados internacionais de direitos humanos, ou seja, é um direito humano e um direito humano fundamental, que as pessoas tenham o direito de se defender, produzindo provas, juntando documentos, ouvindo testemunhas para que tenham esgotadas as possibilidades legais de se defenderem, algo impensável no caso de Joseph K., em O Processo, que sequer tinha conhecimento da razão pela qual estava sendo processado criminalmente. Na conversa entre Joseph K. e o advogado Huld, quando esse afirma ao personagem principal que a primeira petição já estaria quase pronta, alertando, porém, que as petições ao tribunal não eram lidas, o advogado diz: Petições de fato acertadas e probatórias só se podem elaborar mais tarde, quando, no curso dos interrogatórios do acusado, emergem mais nítidos, ou podem ser adivinhados, os itens isolados da acusação e seu fundamento. Nessas circunstâncias, a defesa está evidentemente numa situação muito desvantajosa e difícil.[2]

Essa postura tanto do advogado quanto do tribunal onde está correndo o processo contra o personagem Joseph K. demonstra que é desnecessário se defender, primeiro porque o tribunal supostamente não lê as petições da defesa, segundo porque mesmo que venham a ler, a decisão já terá sido tomada. Esta parece ser uma crítica de Kafka demonstrando não só o descrédito que a Justiça desfruta perante acusados, réus, advogados, mas também o quanto de inquisitório é a Justiça, em que a culpa parece preexistir ao crime. E isso torna patente a desigualdade social, pois os réus que comparecem perante o juiz de instrução são pessoas pobres, pequenos comerciantes (como Block), bancários (como Joseph K.). Não se vê pessoas bem aquinhoadas socialmente, algo que reitera o sentido de ser uma crítica do autor, pois Kafka escancara a questão da desigualdade social quando seu personagem Joseph K. afirma que o advogado Huld é um advogado para pobres.

          Problemas sociais podem ser resolvidos de várias formas. E hoje há estímulo para que sejam utilizadas as variadas formas de soluções de conflito. Essas formas são apresentadas pela ciência jurídica como mediação, composição ou conciliação, e até arbitragem[3], sempre buscando uma melhor opção para não sobrecarregar o já sobrecarregado Poder Judiciário brasileiro.

          O operador de direito aprende logo no início de sua trajetória, que é sempre melhor um mau acordo do que uma boa demanda, e isso se torna crucial nessa época em que vivemos. O sistema judiciário brasileiro é caro e lento. Mesmo os juizados especiais, que trabalham com causas de pequeno valor, e em alguns casos sem precisar de advogado, representam alto custo, neste caso, prevalece a regra do jus postulandi, ou seja, a regra de o próprio ofendido buscar as devidas reparações seja no campo material seja no campo moral. Em O Processo nos parece que é exatamente o que faz o personagem Joseph K.: por não confiar no advogado contratado por seu tio Karl, ele mesmo, na sua primeira audiência, assume sozinho sua defesa, o que, ordinariamente, não seria possível. Kafka demonstra nesse ponto a desnecessidade de um advogado, possivelmente como uma forma ironizar esta categoria profissional, da qual o escritor fazia parte.

          Atualmente, em qualquer demanda, tanto de natureza criminal como de natureza cível, há uma tentativa do Estado em buscar dirimir os conflitos sociais, pela mediação e pela conciliação, conforme determina o CNJ. É uma solução mais célere, sem necessidade de instrução probatória, que é a fase processual em que as partes instruem o processo com provas (instruir enquanto produção de provas, não foi permitida para Joseph K. em O Processo) e com uma participação efetiva das partes interessadas.

De fato, não conseguimos depreender da leitura das obras de Kafka aqui selecionadas nenhuma referência especial à mediação ou à arbitragem, embora a arbitragem internacional seja um sistema bastante antigo, sendo a mediação e os demais sistemas de acesso à justiça bem mais recentes. Contudo, verificamos na pequena narrativa “Odradek” bem como em “O novo advogado”, da lavra do escritor, a utilização de sua consciência jurídica, emulando para fora dos tribunais as figuras presentes na prática jurídica.

          WOLFGANG ISER (2013) nos preleciona, após citar Quintiliano e sua retórica – que trata da utilidade das hipóteses ficcionais na análise de questões legais – ser a ficção fundamental para o aperfeiçoamento das leis, desde o Direito Romano até o direito na era moderna, pois essas ficções se prestam a ajudar a resolver problemas principalmente no campo do saber e prática jurídicos. [4]

          De fato, as construções da jurisprudência, que se iniciam com teses dos advogados e se cristaliza com as decisões dos tribunais, são a interpretação ficcional de outra construção ficcional, que é a lei, contudo, aplicável ao problema da vida prática das pessoas, envolvendo outras ficções, como propriedade, liberdade, bens. Se considerarmos que a propriedade, liberdade e bens são ficções construídas para a pacificação social, sem dúvida e de conformidade com Iser e com Vaihinger, a ficção serve ao aperfeiçoamento das relações sociais e da vida em sociedade.

          Muito já se escreveu sobre as obras de Kafka, e o presente opúsculo não tem a menor pretensão de mostrar um ângulo diferente, ou inédito, sobre o escritor, que não tenha sido ainda debatido ou discutido, tampouco pretende ser um farol ou guardião do templo, no dizer de Agamben. GIORGIO AGAMBEN (2016) escreveu sob o sugestivo título Defesa de Kafka contra seus intérpretes, sobre a crítica literária e a recepção do texto literário e sua interpretação. Ele considera seus críticos como atuais guardiães do templo, sendo a expressão “templo”, na verdade, a literatura ou a arte, e um juízo aos críticos literários em geral, e críticos da obra de Kafka em particular. [5]

           Importante esclarecer que existe o que se chama “sistema multiportas”, variadas formas de acesso à solução de conflitos.  Trata-se de um conceito jurídico, em que o acesso à justiça não se faz necessariamente através do Poder Judiciário, mas através de profissionais que, embora não fazendo parte do sistema de administração da Justiça, podem dar solução rápida e dentro da lei para os conflitos sociais que se apresentam modernamente.

Não há na obra de Kafka qualquer referência quer seja à mediação, quer seja à arbitragem, e, portanto, as referências jurídicas, com as quais eventualmente ilustraremos algum ponto, serão meramente auxiliares. Contudo, procuraremos analisar alguns pontos constantes das obras de Kafka aqui selecionadas, ou fazer menção a outras questões que podem nos ajudar a trazer luz para a discussão aqui presente.

Basicamente podemos afirmar (conforme Vaihinger no prólogo do presente texto) que no dito “sistema multiportas” pode ocorrer a utilização da teoria da ficção, ainda que não declaradamente conhecida pelos operadores do direito. A teoria é utilizada quando operamos essas novas tecnologias, que não são novas no sentido de novidade, mas sim de originalidade.

 Alguns críticos acreditam que o personagem principal em O Processo não é Joseph K., mas sim o processo em si. Outros porém crêem que o verdadeiro protagonista é o esquecimento, ou o direito ao esquecimento, e principalmente o esquecimento de si mesmo. Sobre o direito  de memória e direito ao esquecimento podemos citar FRANÇOIS OST (2001), que considera os juristas como guardiães da memória social: “Esta missão de guardião da memória social foi, desde sempre, confiada aos juristas”.[6] E complementa Ost ao afirmar que “uma coletividade só se constrói sobre uma memória partilhada, e é ao direito que cabe instituí-la”.[7] Nesse sentido, em seu livro, no capítulo sobre O Processo, STANLEY CORNGOLD (2004) afirma, listando alguns valores como felicidade, capacidade e possibilidades, que Kafka sempre tinha estado no “campo literário”, para “esquecer” tais coisas com o objetivo de provocar pelo menos a sua morte moral.[8]

De fato, podemos partilhar dessa mesma análise, de que o personagem principal em O Processo pode ser o esquecimento de si mesmo. Afinal, ao longo de todo o romance, vemos, com angústia que Joseph K. se enreda cada vez mais nas teias da justiça, em um processo iníquo, sem pé e nem cabeça, com manifesta desesperança em solucionar o processo que alterou sua rotina e sua vida desde o seu 30º aniversário. A esperança do leitor é que em algum momento o processo seja arquivado, muito embora sequer tenhamos notícia do que contém os autos e, por beirar o surreal, revela uma crítica contundente do autor de algo mais profundo. Nesse sentido, WALTER BENJAMIN (1987), citando Willy Haas, analisando a obra de Kafka, retoma a questão complexa da religião.[9]

          Essa posição de Haas, corroborada por Walter Benjamin, vem ao encontro da posição de François Ost. E Ost faz questão de demonstrar em sua obra O tempo do direito, que considera tanto o direito à memória, como o direito ao esquecimento, compromisso da sociedade a cargo dos juristas. Nada obstante a crítica de Kafka à administração da justiça, e o mistério em torno do Sistema Judiciário, contida no texto de O Processo, tais críticas vão mais além e estão presentes tanto em “Odradek”, como também no conto “O novo advogado”.

Kafka, no pequeno conto “O novo advogado”, trata de Bucéfalo, um famoso cavalo de guerra de Alexandre, o Grande, do distante ano de 326 a.C. que teria sido admitido pela Ordem dos advogados como um jurista. Kafka se refere ao mesmo como Dr. Bucéfalo. O que parece um absurdo, é tratado pelo escritor com extrema naturalidade, e ainda parece querer orientar e aconselhar ao leitor, a seguir o exemplo do advogado Bucéfalo, que se dedique à leitura aos códigos da lei.

Walter Benjamin, ao tratar dessa pequena narrativa de Kafka, faz referência a Kraft e, citando-o, nos brinda com essa colocação, extremamente importante para o presente estudo da critica ao mito da Justiça: “Não existe na literatura uma crítica do mito mais poderosa e radical”. E ainda citando Kraft, Benjamin prossegue: “A palavra justiça” não é usada por Kafka, mas o que a crítica do mito efectua em toda a sua extensão não é outra coisa senão justiça”.[10]

Muito embora essa análise de Walter Benjamin traga luzes sobre a questão do estudo e da prática jurídica, há uma associação feita por Benjamin ao estudo da Torá, o que nos permite inferir a extrema complexidade da questão religiosa para Kafka. Afinal, um dos personagens que mantem atualizado Joseph K. sobre seu processo criminal é um sacerdote, e o faz dentro de uma catedral, supostamente católica, e é justamente quem também reproduz para Joseph K. a parábola Diante da Lei:

A porta da justiça é o estudo. E no entanto Kafka não se atreve a associar a este estudo as promessas que a tradição associava ao estudo da Tora. Os seus ajudantes são sacristães que ficaram sem paróquia: os seus estudantes, escolares sem escrita.[11]

Como se vê, todos que se debruçam sobre a obra de Kafka acabam enxergando outro viés, ora se observa um Odradek num desvão de um parágrafo, ou de forma fugídia, como nos desvãos da Justiça como em O Processo, ora considerando uma alimária sendo aceita pela Ordem dos advogados, como em “O novo advogado”, ora um ser humano que amanhece como um inseto em Metamorfose, de forma absolutamente natural, como se Kafka quisesse dizer outra coisa, dizendo o mesmo. Fato é que ninguém consegue ser indiferente à literatura de Kafka, e desse modo, a narrativa kafkaesca sempre provoca algum tipo de sensação e, ousadamente, concordamos com ADORNO (1998) quando diz que em nenhuma obra de Kafka conseguimos descortinar claramente o horizonte:

Em nenhuma obra de Kafka, a aura da ideia infinita desaparece no crepúsculo, em nenhuma obra se esclarece o horizonte. Cada frase é literal e cada frase significa. Esses dois aspectos não se misturam como exigiria o símbolo, mas se distanciam um do outro, e o ofuscante raio de fascinação surge do abismo que se abre entre ambos. [12]

          Talvez por essa razão, a obra O Processo desafie a nossa capacidade de entendimento, e pela maneira inusitada e corriqueira como Kafka descreve no primeiro capítulo da obra, não temos a menor ideia do que virá pela frente. E isso é o raio de fascinação do qual menciona Adorno, e que nos alcança, nos envolve, e nos dá esperança. Mas no capítulo nono dessa obra, quando há a preparação para que Joseph K. conheça o pintor Titorelli, verificamos o desalento do personagem acerca da segurança jurídica, envolvendo seu processo:

Infelizmente (…) as vezes acontecia que as primeiras petições ao tribunal não eram lidas. Eram simplesmente anexadas aos autos, assinalando-se que, no momento, os inquéritos e a observação do réu eram mais importantes que tudo o que estava escrito.[13]

De fato, da leitura desse capítulo, cujo trecho transcrevemos acima, não há qualquer segurança jurídica, o que traz para Joseph K. verdadeiro abatimento. Ora, diante desse acabrunhamento do personagem em O Processo, concordamos que somente com o estudo dos livros por parte do advogado Bucéfalo poderíamos obter outra saída, que não fosse a morte, conforme o capítulo 10 da obra. Mas a falta de segurança jurídica é ainda mais claramente demonstrada com o seguinte trecho do capítulo nono:

A defesa, na verdade, não é realmente admitida pela lei, apenas tolerada, e há controvérsia até mesmo em torno da pertinência de deduzir essa tolerância a partir das respectivas passagens da lei. Daí não existirem, em sentido estrito, advogados reconhecidos pelo tribunal: todos os que comparecem diante dele como advogados são, no fundo, somente rábulas.[14]

Nesse ponto do romance, Kafka considera não existirem advogados preparados para enfrentarem em igualdade de condições com os membros do Judiciário, e somente se adaptam aqueles que advogam, sem serem, de fato, formados em direito e, que comparecem diante dos tribunais: os rábulas, ou os paralegais existente no Direito estadunidense. Impossível não estabelecer uma conexão com o conto o novo advogado. Até porque naquela pequena narrativa não há qualquer informação de como bucéfalo se tornou advogado, somente que foi aceito pela ordem dos advogados: “Em geral a ordem dos advogados aprova a admissão de Bucéfalo”.[15]

A segurança jurídica irá ocorrer em outras formas de solução amigável de conflitos sociais, sendo algo que se busca quando há algum conflito perante a Justiça. Mas o que está no imaginário da população é: se a decisão foi de um magistrado, devemos confiar. Sempre poderemos ter a participação de advogados das partes, e, se, por uma questão de dificuldade social e financeira, alguma das partes não possuir advogado, sempre haverá a possibilidade da intervenção estatal. Mas não é só a questão da segurança jurídica que está presente nessas formas contemporâneas de solução de conflito, o mais importante é que a lei atribui a uma terceira pessoa, operador do direito ou não, competência para dirimir controvérsias.

E a falta da segurança jurídica, verificamos, pode estar presente nas obras aqui selecionadas de Kafka, tanto em O Processo, Diante da Lei, como em Na colônia penal. Percebemos a preocupação do tio Karl, em O Processo, em buscar o apoio de um advogado, seu conhecido, em busca da segurança jurídica, que demonstrou não existir, pois o advogado sequer conseguiu peticionar no processo ou ter acesso aos autos do processo, e tudo o que ele apresenta são bisbilhotices e nenhuma solução jurídica. Tudo indicando ser ele um rábula conforme a reflexão de Joseph K. no capítulo nono.

A teoria do como se está presente na solução de conflitos, pois a lei atribui a essa terceira pessoa o papel de solucionar amigavelmente o conflito. Ou seja, é como se essa terceira pessoa fosse magistrado, e sua palavra fosse lei. Isto, além de trazer segurança jurídica, representa a aplicação da teoria de Vaihinger na prática jurídica brasileira, na forma como ele se posiciona ao afirmar:

Além da matemática, não existe praticamente nenhum outro campo que se adeque tão bem à dedução de leis lógicas e a à ilustração ou descoberta de métodos lógicos como o direito. Isso tem a ver com a finidade de princípios entre um e outro campo que tampouco foi notado pelos lógicos.[16]

E prossegue Vaihinger, considerando natural como as ficções são fundamentais para a operação da psique nessas duas áreas distintas do saber humano, como a matemática e o direito:

… o que tais considerações metodológicas tem de estimulante e útil é podermos observar como a psique opera em áreas completamente diferentes sempre seguindo um mesmo princípio. Portanto não é estranho, mas natural, que essas ficções experimentem elaboração teórica mais ampla como na matemática e no direito…[17] 

A ficção em Kafka não só nos brinda com o advogado Bucéfalo, ou com a metamorfose de Gregor Samsa, mas também com um relato de um ex-símio chamado Pedro Vermelho, que narra seu tempo de quando era macaco em Um relatório para uma academia. Nesse texto, afirma Pedro, após quase cinco anos que o separam da condição de símio: “eu, macaco livre, me submeti a esse jugo”.[18]. Essas fábulas de Kafka fazem com que Walter Benjamin se remeta a Ulisses em sua epopeia, como um grego antepassado do escritor, e ao silêncio como um instrumento de guerra, trazendo para análise outra narrativa do escritor, O silêncio das sereias:[19]

Ao criar fábulas, como a do cavalo Bucéfalo, ou de Odradek, Kafka, de fato, parece querer demonstrar que é preciso vencer o mito da Justiça, pois segundo Walter Benjamin, os poderes da Justiça não são invencíveis. Entretanto, é preciso mostrar como o narrador considera como prova do desprezo da Justiça para com os advogados, com um intuito de que tudo recaia sobre o próprio acusado, conforme podemos depreender da leitura do seguinte trecho de O Processo:

…e se proximamente K. for aos cartórios do tribunal, pode dar uma olhada na sala dos advogados, simplesmente para tê-la visto. É provável que ficará assustado diante das pessoas que estão ali reunidas. (…) Mas também esse tratamento dado aos advogados tem a sua justificativa. O que se quer é excluir o mais possível a defesa, tudo deve recair sobre o próprio acusado. No fundo não é um ponto de vista errôneo, mas nada seria mais falho que concluir disso que, nesse tribunal, os advogados são desnecessários ao réu.[20]

Sobre as fábulas mencionadas por Walter Benjamim assim se posiciona Stanley Corngold ao afirmar que a escrita e os personagens de Kafka, fogem do padrão mesquinho de comerciantes e por essa razão, é através da escrita que Kafka cria um mundo rico e particular, citando Odradek, o cavalo advogado, Gregor Samsa, dentre outros:

This is a different idea from saying that Kafka’s world is like the world of petty shopkeepers. Think of the lawyer-horse Bucephalus, Josephine the singing mouse, or even Gregor Samsa the giant vermin, none of whom are shopkeepers, though perhaps one does not want to think of them too insistently as white elephants either. Odradek-that hybrid, inorganic, irrepressible spool- and starlike creature (is he a dredl?)-fits better. [21]

Ora, se os advogados são desnecessários para a defesa do réu, de uma categoria de pessoas apanhadas nas teias da justiça, voltamos ao tempo da autotutela e da barbárie. Contudo, Kafka afirma através do narrador que não se trata de um ponto de vista errôneo, mas ainda assim não pode considerar que os advogados não sejam necessários. Na verdade, os advogados são fundamentais para a administração da Justiça. Nesse sentido, consideramos oportuno citar a questão da autotutela, que não é admitido, no mundo moderno. Essa espécie de solução de controvérsia que se denominou autotutela acabou trazendo inúmeros problemas na convivência das pessoas. THOMAS HOBBES (2015), que escreveu a obra Leviatã, fala sobre as formas de um homem se impor a outro homem, sem ser preciso o uso de força, nos seguintes termos, no capítulo XIII, com o título “Sobre o ESTADO NATURAL da Humanidade em relação à sua felicidade e Miséria”:

A NATUREZA criou os homens tão iguais em suas faculdades físicas e mentais que, embora alguns homens sejam de fato mais fortes fisicamente, ou mentalmente mais rápidos, ainda assim, ao somarmos tudo, as diferenças entre os homens não são tão grandes a ponto de alguém poder reivindicar somente para si qualquer vantagem que outra pessoa também não a possa reivindicar. Pois, em relação ao corpo, o mais fraco é suficientemente forte para matar o mais forte, tanto por meio de alguma trama secreta quanto pela conspiração com outros que se encontram na mesma situação de perigo.[22]

São os interesses dos quais AMARTYA SEN (2010) menciona na sua obra Desenvolvimento como liberdade. De fato, os homens são movidos por interesses, e isso faz parte de nosso processo de evolução, enquanto sociedade contemporânea e pós-moderna.

Sobre a autotutela, salvo no episódio da execução sumária de Joseph K., no capítulo final de O Processo, não temos um exemplo nos demais contos, narrativas e romances escritos, ou pelo menos, não temos conhecimento, mas sim temos outro exemplo em sua vida pessoal, registrado em seu diário, no episódio que Kafka chamou de Tribunal do Hotel, em que ocorreu a dissolução do noivado de Kafka com Felice Bauer. Naquele episódio, ocorrido no dia 12 de julho de 1914, no Hotel Askanischer Hof, em Berlim na presença dos pais de Felice e de sua amiga Grete Bloch.[23] Felice certamente sabia da troca de correspondência entre Kafka e sua amiga Grete, e convida seu, até então, noivo para esse encontro no Hotel. E lá, na presença dos seus pais e de sua amiga, termina seu relacionamento com o escritor. Nessa oportunidade, e guardando-se as devidas proporções, Felice, no exercício da autotutela, ou seja, exercitando por si mesma as próprias razões, coloca Kafka em uma condição desconfortável de ser desmascarado na frente de todos, e assim dissolve seu noivado com o escritor. Observe-se que depois desse rompimento, segundo os biógrafos de Kafka, ainda voltaram a se relacionar mais tarde.

O livro O Processo retrata um processo de natureza criminal, e o personagem principal, apesar de abordado por três agentes policiais ligados à administração da Justiça, é declarado preso. Entretanto ele podia trabalhar sob vigilância, e a sua primeira audiência somente ocorre através de um juiz de instrução, tempos após ter sido cientificado de forma inusitada sobre o processo, conforme capítulo II do livro.

          Verificamos que da leitura das obras de Kafka aqui selecionadas, algumas pessoas estranhas à administração da Justiça possuem acesso ao processo de Joseph K., como é o caso do Sacerdote, bem como do pintor Titorelli, em O Processo, o que nos permitiria inferir que, embora tenham acesso aos autos, não conseguem mudar seu desfecho, e, portanto, não há como essas pessoas mediarem e resolverem o processo de Joseph K.  Já no caso do conto Na colônia penal, a situação ainda é pior, pois se trata de um tribunal penal militar. Em que não há qualquer possibilidade de outras pessoas intervirem naquele sistema iníquo de justiça, em que o oficial militar reúne em sua pessoa o investigador do crime, o Julgador e o aplicador da sentença, geralmente, uma punição medieval de impressão com a utilização agulhas e instrumento perfurante da sentença nas costas do condenado. Muito embora consideremos que o explorador estrangeiro parece funcionar como uma espécie de árbitro.

STANLEY CORNGOLD afirma que O Processo alude às próprias preocupações de Kafka como escritor, e que a obra não é sobre a acusação inexplicada que paira sobre Joseph K., e com a qual é confrontado desde o início, mas sobre a forma como conduz seu caso e cita a explicação do Sacerdote de que os procedimentos se fundem gradualmente no julgamento.[24] Também como afirmamos acima, o explorador estrangeiro, no conto Na colônia Penal, parece ser uma espécie de árbitro que, na visão do oficial operador do mecanismo, poderia legitimar tal sistema de tortura, o que, para o oficial, valeria colocar sua própria vida em risco, o que, de fato, vem a acontecer.

No décimo capítulo de O Processo, verificamos que Joseph K. já sabe que seu processo terá um desfecho, quando recebe os dois agentes que caminham com o mesmo pelas ruas, tarde da noite. Podemos supor que as autoridades do Poder Judiciário que conduziam aquele processo contra K. tivessem decidido pôr fim ao processo com a extinção do acusado ou réu. Neste sentido, é como se as autoridades tivessem poder sobre a vida ou a morte de Joseph K. e é como se considerassem K. como um cão.[25]

Mas também nos parece que houve um exercício equivocado de autotutela naquela execução de Joseph K., pois o titular de uma ação penal é o MP, não o Estado Juiz. E após iniciada a ação penal, o MP desloca sua competência de acusador e passa a ser o fiscal da lei, evitando que os direitos do réu sejam violados. Mas, Kafka pretendeu demonstrar todo o paroxismo daquele processo. E, conseguiu. Porque a sensação é de perplexidade, e parece que ficamos voltando na leitura para saber qual parte não prestamos direito a atenção, porque o desfecho é inusitado. Na verdade, o personagem principal não é Joseph K., nem tampouco o processo, mas sim o direito de esquecimento proposto por Kafka, conforme análise de Benjamin. E o tempo se encarrega do restante.

Na obra Na colônia penal, há um momento em que o oficial prefere se submeter ao mecanismo de tortura ou de execução de sentenças, e simplesmente absolve sem qualquer explicação o condenado, trazendo incredulidade para o pobre homem que sequer entende o que exatamente estava ocorrendo. Ora ele é um condenado à morte, ora ele está livre? E isso sob a algaravia de uma conversa ininteligível para este.

Parece que o oficial possui poderes de vida e de morte sobre aqueles soldados, naquela colônia penal. Ou seja, o oficial, apresenta uma solução de conflitos que havia entre as autoridades criminais daquela colônia e o condenado, e nessa solução ele prefere se submeter ao mecanismo no lugar do condenado e assim declará-lo livre.[26]

Mas a busca pelas chamadas soluções multiportas, com vistas a desobstruir o Poder Judiciário, representa a aplicação da teoria do como se com o terceiro eleito pelas partes, desempenhando o papel do Estado Juiz. Novamente verificamos a presença da intencionalidade do legislador, criando a fictio iuris, conforme nos informa Vaihinger ao tratar das ficções jurídicas.

          Mas é François Ost quem nos apresenta algumas objeções a essa não utilização dos modos de representação formais (advogados e juízes), com base em Habermas e em Mouffe.

          A relação da arbitragem com o sistema multiportas de solução de conflitos é orgânica, tendo em vista o fato de que o árbitro é como se fosse um magistrado, ele faz o papel imparcial de alguém que olhe as partes igualmente, e não sendo parte, pode dar uma solução que, ainda que não atenda todos os interesses, pode agir como se fosse Salomão[27] (numa época em que o Rei julgava, como se fosse também o magistrado).

Conforme já afirmamos, não podemos olvidar que o oficial de Na colônia Penal considerou o explorador estrangeiro como uma espécie de árbitro, e mais ainda, o oficial pretendia com sua autoimolação fazer com que o explorador fosse mais que um árbitro, mas um advogado, e que perpetuasse aquele sistema iníquo que o oficial estava convencido de que funcionava e colocaria as pessoas nos eixos.

Mas voltando ao tema do tempo, reiteramos que o tempo é um fator que pode desestimular alguém que teve seus direitos violados buscar a Justiça. Ora, se o tempo gasto é o fator impactante para a parte, não menos crucial é o gasto de dinheiro. Não nos referimos ao gasto com advogados, mas sim com o custo da justiça. E o protrair do tempo também gera um custo que talvez as partes não queiram investir.

De fato, o tempo pode ser um fator determinante para afrontar um princípio jurídico que se denomina duração razoável de um processo. Rui Barbosa, em Oração aos moços[28], já dizia: “(…) justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. E concluía essa máxima, afirmando: “Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade”. Essa posição de Rui Barbosa foi publicada pela primeira vez em 1921.

Assim, trazemos novamente a obra de François Ost, O tempo do direito, para que observemos como o direito e a literatura podem se complementar. Com efeito, vários estudiosos procuraram identificar em obras literárias a presença de posições jurídicas e aqui iremos pinçar alguns trechos de obras que tratam esse tema.

Contudo, consideramos pertinente citar apenas os trechos que tenham relação com o tema. Caso haja outros, afirmamos que direito e literatura, coexistem há muito tempo, por várias gerações, e não temos a pretensão de considerar em nosso estudo esse tema como uma questão fechada. Nesse sentido, André Karam Trindade, citando François Ost, afirma: “a ideia de que a ficção constitui uma mina de saberes à qual as ciências humanas – especialmente o direito – deveriam obrigatoriamente se voltar” e, antes, André Karam havia parafraseado Ost e uma expressão latina: “os juristas aprendem que “o direito se origina no fato” (ex facto ius oritur), enquanto a reflexão proposta por Ost é, justamente, no sentido de reformular tal aforismo: “do relato é que advém o direito” (ex fabula ius oritur)[29]

É importante lembrar aqui que há outros escritores que buscam localizar nas obras de literatura trechos ou conhecimentos jurídicos. E nesse sentido podemos citar Sergio Habib, que buscou nas obras de Jorge Amado ideias penais.[30]

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que essa busca de relacionar o direito com a literatura é uma prova inequívoca de que muito há que se pesquisar ainda na obra de Kafka. Temos a impressão, ao longo da leitura, de que os citados autores de obra literárias escrevem como se buscassem amparo nas ideias jurídicas para fundamentarem seu pensamento. No caso específico de Kafka, sabemos que ele foi formado em direito e trabalhou com essa profissão, embora por pouco tempo.

O direito é uma ferramenta fundamental para solucionar os conflitos sociais, ainda que não consideramos ser necessário judicializá-los. Apenas como uma última saída. E os conflitos sociais no mundo contemporâneo podem ser diferentes dos tratados na obra de Vaihinger, mas não discrepam.

Essa é a verdade, principalmente em um mundo tão desigual, ainda que globalizado, a colonialidade campeia. Este mundo vivenciou uma pandemia que traz à luz não só a desigualdade existente e encoberta, pois ela não aparece nos debates públicos, mas também deixa mostrar seu o interesse pela mais valia. E a mais valia[31] prevalece, com as organizações farmacêuticas e as grandes corporações bancárias que lucram, nada obstante, o aumento da pobreza e da miserabilidade, tanto em países desenvolvidos e muito mais ainda nos países em desenvolvimento.

Segundo Ost, a ciência jurídica é aquela que mais identifica os problemas decorrentes de Kronos, na prática jurídica. É na prática jurídica que encontramos inúmeras possibilidades de aplicação da teoria do como se, não só a partir dos exemplos citado por Vaihinger, que mencionamos no presente estudo, mas também nos exemplos atuais, contemporâneos.

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Citas

[1] Artur Antonio da Rocha, é advogado, Professor Associado da UFMA (Universidade Federal do Maranhão), é graduado pela UFF (Universidade Federal Fluminense), é Mestre pela UGF (Universidade Gama Filho) e Doutor pela UFF (Universidade Federal Fluminense).

[2] KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das letras, 1997. Pág. 142

[3] DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 19ª ed. Volume 1. Salvador: Juspodivm, 2017. Página 185, assim se posiciona acerca da arbitragem: A arbitragem não é encarada, neste Curso, como um equivalente jurisdicional. Entende-se que se trata de exercício de jurisdição por autoridade não estatal. Não é equivalente jurisdicional porque é jurisdição.

[4] ISER, Wolfgang. O fictício e o Imaginário. Perspectivas de uma Antropologia Literária. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: Editora Uerj, 2013Página 147

[5] AGAMBEN. Giorgio. Ideia da prosa. 1ª ed. Trad. de João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2016.

[6] OST, François. O tempo do Direito. Tradução: Maria Fernanda Oliveira. – Lisboa: Instituto Piaget, D.L. 2001. Página 52

[7] OST. Op. Cit. Página 49

[8] CORNGOLD, Stanley. Lambent traces: Franz Kafka. Oxfordshire, UK: Princeton University Press, 2004; Página 61.

[9] BENJAMIN, Walter. Kafka. Tradução de Ernesto Sampaio. Lisboa: Hiena Editora: 1987; Páginas 45/46

[10] BENJAMIN. Op. Cit. Página 56

[11] BENJAMIN. Op. Cit. Páginas 56/57.

[12] ADORNO, Theodor. Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad. WERNET, Augustin; ALMEIDA, Jorge de. São Paulo: Ática, 1998. Página 240.

[13] KAFKA. Op. Cit. Pág.142

[14] KAFKA. Op. Cit. Págs.142/143

[15] KAFKA. Op. Cit. Pág. 11

[16] VAIHINGER. Op. Cit. Página 157

[17] VAIHINGER. Op. Cit. Página 157

[18] KAFKA. Op. Cit. Página 59

[19] Esse conto está presente na obra Narrativas do Espólio: KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das letras, 2002. Páginas 104/106.

[20] KAFKA. Op. Cit. Pág. 143

[21] CORNGOLD. Op. Cit. Página 204

[22] MALMESBURRY, Thomas Hobbes de. Leviatã: ou Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e civil. Tradução de Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2015. Pág.115.

[23] KAFKA, Franz. Diários 1909-1923. Op. Cit. Página 378

[24] CORNGOLD. Op. Cit. Página 62

[25] KAFKA. Op. Cit. Pág. 278. De fato é a forma como o Escritor denomina o capítulo “Como um cão”

[26] KAFKA. Op. Cit. Página 60. Em que o oficial assim determinou ao condenado, e ele sequer conseguiu acreditar no primeiro momento, até porque estava preso na máquina ainda: – livre, você está livre – disse o oficial.  Pela primeira vez o rosto do condenado adquiriu realmente vida. Era verdade? Era apenas um capricho passageiro do oficial? O explorador estrangeiro tinha obtido dele clemência? O que estava acontecendo? Assim parecia perguntar seu rosto. Mas não por muito temo. Fosse o que fosse, ele queria, se tinha permissão para tanto, estar realmente livre, e por isso começou a se sacudir, na medida em que o rastelo o admitia.

[27] É muito conhecida o julgamento de Salomão envolvendo duas mulheres pleiteando a maternidade de uma criança e a solução dada pelo Rei, até hoje usamos como paradigma e dizemos solução salomônica. Está constante da Bíblia em I Reis 3:16-28 (A Bíblia Sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. 2ª ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993)..

[28] Barbosa, Rui. Oração aos moços. edição popular anotada por Adriano da Gama Kury. – 5ª ed. – Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997. Página 40.

[29] TRINDADE, Op. Cit. Páginas 15/16

[30] HABIB, Sergio. Ideias penais na obra de Jorge Amado. (um novo olhar sobre o universo amadiano). Brasília: Editora Consulex, 2012.

[31] Segundo o dicionário prático da língua portuguesa Michaelis, na página 551,  mais valia é um conceito econômico: Conceito marxista, segundo o qual o capital forma-se a partir do lucro gerado pelo montante acumulado do salário devido a um operário e que não lhe foi pago ( valor do que o trabalhador produz menos o valor do seu próprio trabalho); lucro obtido com uma mercadoria com o trabalho de quem produz. Mas, utilizamos essa expressão mais valia quando uma parte prevalece sobre uma maioria ou minoria. Como no caso das organizações farmacêuticas e outras corporações.

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