Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente
RIDCA - Edición Nº1 - Derecho Animal
Laura C. Velasco. Directora
15 de junio de 2022
Direito Animal brasileiro: Contexto atual e transdisciplinariedade
"Derecho Animal brasileño: Contexto actual y transdisciplinariedad"
Autores. Arthur Henrique de Pontes Regis y Cynthia Silveira Carvalho
Por Arthur Henrique de Pontes Regis[1] y Cynthia Silveira Carvalho[2]
RESUMO
Apresentou-seo contexto atual do Direito Animal brasileiro, que se encontra em expansão e evolução, perpassando pela atual crise de paradigma em razão das anomalias verificadas na atribuição de direitos apenas aos seres humanos com a exclusão dos demais animais da esfera de consideração moral. Pontuou-se ainda sobre a importância da transdisciplinariedade para a continuidade dos progressos na seara do Direito Animal. Utilizou-se a metodologia de pesquisa documental e bibliográfica e concluiu-sepela ausência de descontinuidade no antropocentrismo legislativo brasileiro, fulcrado no pensamento contratualista que há séculos influencia o direito, apesar dos inegáveis avanços na proteção animal.Ponderou-se sobre o grave risco de retrocessos legislativos ou de respostas inadequadas do sistema de justiça ao enfrentamento das situações de crueldade, caso não se faça prevalecer a Constituição Federal, que atribuiu dignidade ao animal ao protegê-lo não apenas pela sua função ecológica, mas pelo seu interesse individual de não sofrer e, para tanto, não se prescindiria da mudança de paradigma.
Palavras-Chave:Dignidade Animal.Direito Animal.Brasil.Antropocentrismo. Transdisciplinariedade.
Resumen
Se presentó el contexto actual del Derecho Animal brasileño, que se encuentra en expansión y evolución, pasando por la actual crisis de paradigma por anomalías en la atribución de derechos sólo a los seres humanos con exclusión de los demás animales de la esfera de la consideración moral. También se señaló la importancia de la transdisciplinariedad para la continuidad de los avances en el campo del Derecho Animal. Se utilizó la metodología de investigación documental y bibliográfica y se concluyó que no hay discontinuidad en el antropocentrismo legislativo Brasileño, basado en el pensamiento contractualista que ha influido en el derecho durante siglos, a pesar de los innegables avances en la protección animal. Se consideró el grave riesgo de retrocesos legislativos o respuestas inadecuadas de la justicia frente a situaciones de crueldad, si no se prevalece la Constitución Federal, que atribuía dignidad al animal protegiéndolo no sólo por su función ecológica, sino también por pero por su interés individual en no sufrir y, para ello, sería imprescindible un cambio de paradigma.
Palabras clave: Dignidad Animal. Derecho Animal. Brasil. Antropocentrismo. Transdisciplinariedad.
Abstract
The current context of Brazilian Animal Rights was presented, which is expanding and evolving, passing through the current paradigm crisis due to anomalies in the attribution of rights only to human beings with the exclusion of other animals from the sphere of moral consideration. It was also pointed out the importance of transdisciplinarity for the continuity of progress in the field of Animal Rights. Documentary and bibliographic research methodology was used and it was concluded that there is no discontinuity in Brazilian legislative anthropocentrism, based on contractualist thinking that has influenced the law for centuries, despite the undeniable advances in animal protection. The serious risk of legislative setbacks or inadequate responses by the justice system to dealing with situations of cruelty was considered, if the Federal Constitution is not prevailed, which attributed dignity to the animal by protecting it not only for its ecological function, but also for but for their individual interest in not suffering and, for that, a paradigm shift would be essential.
Keywords: Animal Dignity. Animal Rights. Brazil. Anthropocentrism. Transdisciplinarity.
INTRODUÇÃO
O Direito Animal brasileiro encontra-se em expansão e evolução, eopresente artigo, através da metodologia de pesquisa documental e bibliográfica, além de dar um panorama geral do seu contexto atual, busca demonstrar a necessidade do aprofundamento do diálogo com instrumentos extrajurídicos, que podem ser extraídos de outras ciências, saberes e disciplinas, tais como a psicologia, neurociência, etologia, bem como da ética e da filosofia.
O Direito Animal positivo é uma realidade no Brasil e possui fundamento constitucional na vedação à crueldade, conforme disposto na parte final do inciso VII, do § 1º, do artigo 225 (Brasil, 1988), de onde deriva a proibição da prática de maus-tratos, consoante previsão do artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) (Brasil, 1998), além de outras medidas de proteção e garantias previstas em leis infraconstitucionais, tanto na esfera federal, quanto na estadual e municipal.
Conta também, o Direito Animal brasileiro, com vários precedentes judiciais, valendo destacar a decisão do Supremo Tribunal Federal- STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº4.983, de 06/10/2016, na qual se ressaltou que o constituinte fez uma avançada opção ética no que diz respeito aos animais, ao vedar práticas que os submetam a crueldade, não apenas reconhecendo que são sencientes, mas também o interesse que eles têm de não sofrer, cuidando-se de uma norma autônoma, com objeto e valor próprios (Supremo Tribunal Federal, 2016).
A doutrina brasileira, apesar de não se mostrar suficientemente organizada e sistematizada, está cumprindo o seu papel na formação e desenvolvimento de bases mais sólidas para uma dogmática jurídica animalista.A título de exemplo, muito se tem escrito sobre o enquadramento jurídico dos animais, para que não sejam considerados objetos, seja classificando-os como sujeitos de direitos despersonificados ou atribuindo a eles personalidade jurídica sui generis(Lourenço, 2008; Regis, 2020).Da mesma forma, sobre o instituto da família multiespécie e seus requisitos, dentre outros temas (Vieira, Silva, 2020).
As interações ao longo da história dos seres humanos com os demais animais são marcadas pela dominação e exploração, visando a satisfação de interesses e desejos, como alimentação, vestuário, força de trabalho, meio de transporte e entretenimento, advindo desdobramentos sociais e jurídicos que vão se alterando no decorrer do tempo.De fato, as relações sociais e culturais não são estáticas, e as modificações são mais dinâmicas quanto maiores o desenvolvimento científico e as reflexões éticas.
Assim, as percepções com relação aos animais são alteradas na medida em que as relações sociais evoluem, tornando-se censuráveis eticamente práticas que ameaçam a integridade física e mental dos animais, especialmente a partir do reconhecimento da senciência, além da consciência presente nos mamíferos, aves, polvos e outros animais, declarada por renomados neurocientistas reunidos em Cambridge (Low, 2012).
Estudos no campo da neurociência também demonstram haver limitações de ordem biológica na tomada de decisões dos seres humanos (Horta, 2019), sendo necessário, portanto, adquirir conhecimentos provenientes de outras ciências e disciplinas, para que sejam dadas respostas mais adequadas aos problemas (Andrade, 2019).
Quando a Constituição Federal vedou a prática de crueldade contra os animais, atribuiu-lhes intrinsecamente dignidade, sendo esse o pilar central do Direito Animal (Ataide Junior, 2018; Ataide Junior, 2020), que se alicerça no reconhecimento de que eles possuem um fim em si mesmo, contrariando toda a concepção contratualista construída ao longo dos séculos, que atribui valor apenas aos seres humanos, dentro de um paradigma individualista e antropocêntrico, que não se sustenta mais.
Com efeito, estudos demonstrando a total indefensabilidade da discriminação de seres com base na espécie evidenciam a necessidade de um repensar científico, na medida em que o paradigma antropocêntrico não está mais conseguindo solucionar as anomalias verificadas no seu próprio sistema (Silva, 2008).
Um exemplo dessas incongruências verifica-se no artigo 82 do Código Civil, que enquadra o animal, segundo interpretação majoritária, na categoria de coisa (Brasil, 2002), ao passo que projetos de leis federais estão tramitando visando modificar o seu status jurídico para sujeito despersonificado ou com personalidade jurídica sui generis, e leis estaduais e municipais já promoveram essa alteração, em consonância com a Constituição Federal de 1988(Regis, 2020).
Assim, o presente artigo pondera sobre a necessidade de uma reflexão crítica no atual contexto do Direito Animal brasileiro, que se encontra em claro movimento de crescimento. Conclui ressaltando o importante papel da transdisciplinariedade no Direito Animal para continuidade dos avanços e a mudança de paradigma, a fim de evitar contradições nas leis, ou até mesmo retrocessos e respostas inadequadas do sistema de justiça, fazendo valer a proteção, de matriz biocêntrica, conferida na parte final do inciso VII, do § 1º, do artigo 225, da Constituição Federal (Brasil, 1988).
CONTEXTO ATUAL DO DIREITO ANIMALBRASILEIRO
O Direito Animal brasileiro possui fundamento constitucional na vedação à crueldade, conforme disposto na parte final do inciso VII, do § 1º, do artigo 225:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
[…]
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (Brasil, 1988).
Decorre de tal dispositivo constitucional a proibição legal da prática de maus-tratos, consoante previsão do artigo 32 da Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais):
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. (Brasil, 1998).
Cumpre destacar que a primeira lei brasileira protetiva dos animais remonta a meados do século passado (Mól, Venâncio, 2019). Trata-se do Decreto nº 16.590/64, que proibiu as diversões públicas que causassem sofrimento aos animais, ou seja, admitindo, desde aquela época, a capacidade de sofrer dos animais (Sanches, Ferreira, 2014).
Dispondo sobre o bem-estar dos animais, com previsão da possibilidade de assistência em juízo, foi instituído o Decreto nº 24.645/34, considerada a primeira incursão não antropocêntrica do século passado, antes até mesmo dos movimentos ambientalistas (Rodrigues, 2012).
Outros diplomas legais poderiam ser aqui mencionados e praticamente todos eles resguardam a proteção animal sem, no entanto, considerar os seres não humanos como possuidores de um valor inerente.
Em 2002, houve a reforma do Código Civil (Lei nº 10.406), mas ostatus jurídico conferido aos animais não foi alterado, continuando a serem tratados no artigo 82 (Brasil, 2002) como coisa, passível de apropriação e comércio (Silva, Vieira, 2014).Demonstra-se:
Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social (Brasil, 2002).
No entanto, foram promulgadas leis estaduais e municipais e estão em tramitação projetos de leis federais que, partindo do fundamento da senciência animal, alteram o enquadramento jurídico dos animais, para que não sejam considerados objetos (Regis, 2020).E, por seu turno, a proposição de lei federal com a tramitação mais adiantada é o Projeto de Lei nº 6.054/2019, que possui a seguinte redação originária:
Art. 1º – Esta Lei estabelece regime jurídico especial para os animais domésticos e silvestres.
Art. 2º – Constituem objetivos fundamentais desta Lei:
I. Afirmação dos direitos dos animais e sua respectiva proteção;
II. Construção de uma sociedade mais consciente e solidária;
III. Reconhecimento de que os animais possuem personalidade própria oriunda de sua natureza biológica e emocional, sendo seres sensíveis e capazes de sofrimento.
Art. 3º – Os animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa.
Art. 4º – O artigo 82 do Código Civil passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 82………………………………………………………………………………………………………
Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica aos animais domésticos e silvestres.
Art. 5º- Esta lei entra em vigor 60 (sessenta dias) após sua publicação (Câmara dos Deputados, 2019).
Conta o Direito Animal brasileiro também com precedentes judiciais, valendo destacar a decisão do STF na ADI nº4.983, de 06/10/2016, que versa sobre a prática da “vaquejada”(prática na qual dois vaqueiros montados a cavalo têm de derrubar um boi, puxando-o pelo rabo, entre duas faixas de cal para obter determinada pontuação) e, por maioria, declarou ainconstitucionalidadedaLeinº15.299/2013,doEstadodoCeará, consoante a seguinte ementa:
VAQUEJADA–MANIFESTAÇÃOCULTURAL–ANIMAIS–CRUELDADEMANIFESTA–PRESERVAÇÃODAFAUNAE DAFLORA –INCONSTITUCIONALIDADE.Aobrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denomina da vaquejada (Supremo Tribunal Federal, 2016).
Foram destacados outros precedentes no próprio texto da referida decisão, como o Recurso Extraordinário – RE nº153.531/SC, de 1997, conhecido como “farra do boi”, a ADInº2.514/SC,julgadaem2005, e a ADI nº 1.856/RJ, de 2011, costume popular conhecido por “briga de galo”, nos quais restou assentada a inconstitucionalidade, ressaltando a violência e a maldade a que eram submetidos os animais.
Cabe também mencionar o recente e simbólico acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná – TJPR, Agravo de Instrumento – AI nº0059204-56.2020.8.16.0000, que concluiu ser cabível o acesso à justiça aos animais não humanos, podendo figurar no polo ativo, pois detentores da capacidade de estar em juízo (personalidade judiciária), devidamente representados:
RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. Decisão que julgou extinta a ação, sem resolução de mérito, em relação aos cães Rambo e Spike, ao fundamento de que estes não detêm capacidade para figurarem no polo ativo da demanda. Pleito de manutenção dos litisconsortes no polo ativo da ação. Acolhido. Animais que, pela natureza de seres sencientes, ostentam capacidade de ser parte (personalidade judiciária). Inteligência dos artigos 5º, XXXV, e 225, § 1º, VII, ambos da Constituição Federal de 1988, c/cart. 2º, §3º, do Decreto-Lei nº 24.645/1934. Precedentes do direito comparado (Argentina e Colômbia). Decisões no sistema jurídico brasileiro reconhecendo a possibilidade de os animais constarem no polo ativo das demandas, desde que devidamente representados. Vigência do Decreto-Lei nº 24.645/1934. Aplicabilidade recente das disposições previstas no referido decreto pelos Tribunais Superiores (STJ E STF). Decisão reformada. Recurso conhecido e provido(Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, 2021).
Na doutrina, vem ocorrendo uma intensa produção sobre os mais variados temas relacionados ao Direito Animal, valendo destacar as publicações relativas aos contornos da família multiespécie, no âmbito do Direito de Família, no qual os animais vêm adquirindo direitos até então conferidos apenas aos seres humanos, sendo considerados nos lares brasileiros membros da família, desconstruindo conceitos preestabelecidos de formação familiar essencialmente humana(Dias, 2000; Lourenço, 2008; Santana, Oliveira, 2019; Marotta, 2019; Vieira, Silva, 2020; Lima, 2020; Regis, Santos, 2021).
Para caracterização da denominada família multiespécie, afetividade e intimidade aparecem como requisitos na convivência constante do animal com os humanos (em virtude da existência de vínculos afetivos), sendo sua presença dentro do lar, participando da rotina da casa, elementos indispensáveis para a verificação da existência do vínculo familiar (Silva, 2020).
Esse é um breve panorama do contexto atual do Direito Animal brasileiro, que se encontra evoluindo através de novas leis, bem como pela construção doutrinária e jurisprudencial(Lourenço, 2008; Marotta, 2019, Santana, Oliveira, 2019; Vieira, Silva, 2020; Lima, 2020; Regis, Santos, 2021), sendo necessário, para que os avanços continuem,o aprofundamento do diálogo do direito com instrumentos extrajurídicos, que podem ser extraídos de outras ciências e disciplinas.
CRISE DO PARADIGMA ATUAL E A TRANSDISCIPLINARIEDADE
Paradigma compreende o conjunto de crenças, regras, compromissos e valores que pesquisadores compartilham, num determinado período, e que confere à atividade investigativa uma certa unidade, permitindo a construção de uma comunidade científica. A crise tem início quando as instituições existentes deixam de responder adequadamente aos problemas postos pelo paradigma vigente. Assim, o sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para a revolução. Aliás, o próprio desenvolvimento científico deve ser visto como um movimento revolucionário e, com o tempo, após o processo de revolução, muda-se a forma de perceber o mundo e a própria ciência(Brito, 2018).
Não haveria como se defender dois paradigmas sem cair na contradição. Da mesma forma, não seria também possível conciliá-los, por ausência de medida comum entre eles (Kuhn, 2003).No entanto, a possibilidade da comunicabilidade paradigmática, com a ascensão do novo não implicando na necessária supressão do velho, poderia encontrar sustentáculo nos princípios preconizados por Morin, que trabalha com as idéias de ordem, desordem e organização, na busca de um fenômeno complexo. Neste caso, a defesa de um paradigma dependeria de uma árdua sustentação científica que potencializaria a importância da epistemologia (Belchior, 2017).
Neste contexto, a Constituição Federal brasileira, pela primeira vez em sua história, elevou a proibição de crueldade contra os animais ao status de preceito constitucional e, face ao princípio da efetividade, não é possível admitir qualquer tipo de exploração institucionalizada dos animais sem violar esta norma constitucional. Com efeito, o texto constitucional, mais do que um status moral ou posse de direitos morais, concedeu aos animais direitos fundamentais básicos, impondo a todos os cidadãos e aos poderes públicos a obrigação de respeitá-los (Gordilho, 2008).
Aliás, no atual estágio evolutivo da humanidade, impõe-se o reconhecimento de que há dignidade para além da pessoa humana, de modo que se faz presente a tarefa desuperação da limitação antropocêntrica que coloca o ser humano no centro de tudo e todo o resto como instrumento a seu serviço. Assim, o bem protegido pelo artigo 225 da Constituição, consoante salientou a Ministra Rosa Weber, na ADI nº 4.983/CE, já citada alhures, possui matriz biocêntrica, pois confere valor intrínseco às formas de vida não humanas.
Para o Ministro Barroso, em voto proferido na mesma decisão acima, apesar do caputter feição antropocêntrica, equilibrou-se com o biocentrismo por meio de seus parágrafos e incisos, que é representativo de uma opção antropocêntrica moderada, na qual o sofrimento animal importa por si só, independente do equilíbrio do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação da espécie (Supremo Tribunal Federal, 2016).
No julgamento do Recurso Especial – REspnº 1.797.175/SP, pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, também se depreende a necessidade de repensar o conceito, ainda vigente, de dignidade alicerçada no pilar antropocêntrico:
Nesse contexto, deve-se refletir sobre o conceito kantiniano, antropocêntrico e individualista de dignidade humana, ou seja, para incidir também em face dos animais não humanos, bem como de todas as formas de vida em geral, à luz da matriz jusfilosófica biocêntrica (ou ecocêntrica), capaz de reconhecer a teia da vida que permeia as relações entre ser humano e natureza.
[…]
Diante dessas inquietações, faz-se necessário, como já mencionado, repensar a concepção kantiniana individualista e antropocêntrica de dignidade e avançar rumo a uma compreensão ecológica da dignidade da pessoa e da vida em geral, considerando a premissa de que a matriz filosófica moderna para a concepção de dignidade (da pessoa humana) radica essencialmente no pensamento kantiniano (Superior Tribunal de Justiça, 2019).
Destaca-se a condição de vulnerabilidade dos animais como um importante referencial bioético,linha de conexão e fundamento para um status jurídico sui generis, deixando de ser coisas ou bens e alcançando um novo patamar de interpretação jurídica, abrindo espaço para aprovação de leis que concretizem seus direitos e para superação do paradigma antropocêntrico (Regis, 2018).
Conclui-se, portanto, que os processos de mudança de paradigma acima delineados, em razão da crise deflagrada, estão em curso. Aliás, o significado das crises consiste exatamente no fato delas indicarem que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos ou mudar a teoria e, no século passado, já era visível a crise do modelo contratualista racionalista do direito que excluía os animais (Silva, 2008).
O paradigma cartesiano promoveu a separação entre filosofia e ciência e ainda que a epistemologia explicasse o processo de produção do conhecimento, na prática, ele se tornou fragmentado. As limitações impostas por esse paradigma, reducionista e mecanicista, que desestimula a comunicação entre os campos de conhecimento, impulsionaram a sua crise. Nessa seara, Morin, evocando o conceito paradigmático de Kuhn, defendeu a complexidade como paradigma científico da transdisciplinaridade (Morin, 2005).
O Direito Animal estrutura-se no diálogo com outros campos do conhecimento, de forma que o pensamento complexo e o transdisciplinar tornam-se parte de seu arcabouço teórico.Soma-se a isso o fato de que o progresso do direito não prescinde da abordagem de múltiplos elementos, quais sejam, econômicos, biológicos, genéticos, cibernéticos e técnicos. Dessa forma, mostra-se transdisciplinar o método atinente ao Direito Animal(Trajano, 2014).
Com relação às disciplinas e outros campos do conhecimento, salienta-se que, nas últimas décadas, a etologia, ciência que estuda o comportamento animal, tem apresentado achados robustos no sentido de que outros animais são dotados de uma sociabilidade e uma complexa capacidade de julgamento e tomada de decisões, alinhados aos desafios que geralmente encontram em seu nicho ecológico (Horta, 2019).
Com base nos estudos relativos à neurociência, que avançaram a passos largos nas últimas décadas, destaca-se que, no evento científico realizado em Cambridge, houve a declaração de que animais não humanos, tais como os mamíferos, aves e polvos, são portadores de estados de consciência e comportamentos intencionais e afetivos (Low, 2012).
No entanto, apesar da cientificidade dos dados apresentados, pode estar preconcebida uma errônea crença de ausência ou minimização dos sentimentos e emoções dos animais. Sabe-se que essa visão é equivocada, mas é exatamente o que pode ocorrer quando se faz uso das heurísticas, que são atalhos usados para decidir em situação de incerteza, e podem levar a desvios sistemáticos de julgamento, denominados vieses (Almeida, Cestari, Nojiri, 2019).
Elas podem até ser eficientes em algumas situações, mas pouco flexíveis a mudanças de contexto em outras (Horta, 2019). Além disso, são relevantes no âmbito jurídico em diversos aspectos, pois podem influenciar tanto aqueles que criam e aplicam a lei, como o público destinatário (Almeida, Cestari, Nojiri, 2019).
Há resistência a mudanças devido a conceitos internalizados e à própria lógica do sistema econômico vigente, de forma que reconhecer dignidade aos animais, por exemplo, significa perdas financeiras para aqueles que lucram com a exploração, além daquela inerente ao próprio campo psicológico e comportamental do ser humano, que é enviesado e de racionalidade limitada (Carvalho, 2018).
Diante dessas resistências, sem descurar das especificidades da ciência jurídica, deve-se buscar um entendimento multifacetado ou mais completo da realidade (Vilela, 2015). Nessa seara, a transdisciplinariedade como pressuposto para exame e compreensão dos mais diversos níveis de realidade contidos nos complexos problemas cotidianos torna-se ainda mais necessária num contexto de crise de paradigma.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendeu-se expor um panorama geral do Direito Animal brasileiro que, atualmente, está em um período de expansão e evolução, o que pode ser verificado especialmente pelas recentes decisões judiciais que: reconheceram a senciência animal (proferida pelo Supremo Tribunal Federal – STF), destacaram a necessidade de rompimento com o atual paradigma antropocêntrico (emanada do Superior Tribunal de Justiça – STJ) e reconheceram a capacidade processual dos animais não humanos (prolatada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná – TJPR).
Portanto, foi observado no ordenamento jurídico brasileiro um indicativo relevante de superação das anomalias verificadas na atribuição de direitos apenas aos seres humanos com a exclusão dos demais animais da esfera de consideração moral, lastreado no desenvolvimento de estudos e pesquisas transdisciplinares.
Apesar da clara ausência de descontinuidade no antropocentrismo legislativo brasileiro, fulcrado no pensamento contratualista que há séculos influencia o direito, verificou-se que os avanços na proteção animal são inegáveis.Identificou-se propostas de alteração na legislação federal que, lastreadas no reconhecimento da senciência, alteram o enquadramento legal dos animais não humanos, para que saiam da interpretação judicial ainda dominante segundo a qual seriam meros bens semoventes.
Por fim, vislumbrou-se a existência de obstáculos para o rompimento com o paradigma antropocêntrico que permeia, preponderantemente, o sistema jurídico brasileiro, havendo, inclusive, a possibilidade de retrocessos na legislação protetiva aos animais. Todavia, já é perceptível rasgos ao tecido antropocêntrico (alicerçados no fundamento constitucional brasileiro de reconhecimento da dignidade animal), que permitem o prenúncio de avanços ainda maiores no desenvolvimento do Direito Animal brasileiro.
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