Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente

Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente
RIDCA - Edición Nº2 - Derecho Constitucional y Derechos Humanos

Javier Alejandro Crea. Director

20 de diciembre de 2022

A ditadura brasileira na Corte Interamericana de Direitos Humanos: Principais pontos
La dictadura brasileña en la Corte Interamericana de Derechos Humanos: Puntos principales

Autoras. Priscila Caneparo dos Anjos y Valentina Vaz Boni. Brasil

Priscila Caneparo dos Anjos[1]

Valentina Vaz Boni[2]

 

  1. INTRODUÇÃO

Em um Estado que conta com dimensões continentais,com uma diversidade cultural e um passado autoritário como o Brasil, o respeito aos tratados de direitos humanos e o cumprimento de sentenças internacionais são imprescindíveis para a manutenção do Estado Democrático de Direito. Malgrado a dita redemocratização ocorrida após o fim da ditadura militar em 1985, nota-se que, ainda que se tenha o reconhecimento dos mais diversos documentos internacionais, remanescem alguns obstáculos para a efetiva concretização do direito à memória e à verdade sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas no período ditatorial.

Sob este prisma, emerge a Organização dos Estados Americanos (OEA), que, ainda que vise, em um primeiro momento, a integração regional e ações voltadas à construção democrática, é inegável a sua preocupação para com os direitos humanos – já que, em seu bojo, encontra-se o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, formado essencialmente pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, guardiãs dos direitos consagrados, especialmente,na Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948) e na Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos (1969), e, na temática atinente aos brutais crimes do regime autoritário, na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985).

A partir de então, emerge a importância do presente estudo, que visa analisar a qualidade democrática brasileira, com particular foco na investigação dos casos daCorte Interamericana que versam sobre violações dos direitos humanos ocorridos no período da ditadura militar brasileira (1964-1985). Neste sentido, serão examinados os Casos Julia Gomes Lund, Vladimir Herzog e Gabriel Sales Pimenta, ainda pendente de julgamento.

Por fim, o presente trabalho utilizará o método dedutivo, que consiste no caminho do particular para o geral, e terá como base o exame das determinações da Comissão e da Corte Interamericana sobre os casos supramencionados. Aliado a isto, se fará uso do método indutivo, que parte do geral para o particular, para constatar os empecilhos residuais que inibem o alcance da qualidade democrática brasileira em sua integralidade.

  1. A SIMBIOSE ENTRE A DEMOCRACIA E OS DIREITOS HUMANOS

O princípio democrático transcende o próprio patamar político, vindo a ser essencial em todas as esferas das ações humanas. Assim, a partir de um aporte teórico clássico[3], baliza-se a democracia no método de formação das decisões políticas: quando se tem regras atribuindo ao povo e à maioria de seus membros o poder de assumir as decisões, diretamente ou por intermédio de seus representantes, então se tem o chamado regime democrático.

Sem embargo da importância deste entendimento, caracterizado por concepções políticas e formais, a presenta análise norteia-se pelo referencial teórico de FERRAJOLI (2014, p.36) quanto à teoria democrática: entende este autor que a democracia não apenas se limite a um tipo de regime político, pautado na vontade de todos ou de sua maioria. A democracia, para ele – assim como para este estudo –, vai além: a democracia é, de fato, vinculada aos direitos fundamentais e aos direitos humanos, sendo, de fato, o regime mais propício à sua efetivação.

É crucial, neste sentido, entender que a democracia acaba por ser essencial à própria consolidação do princípio da igualdade, onde todos que ali se encontram, unidos por um vínculo de vontades comuns, dispõem de valorações semelhantes, permitindo com que o entusiasmo para com a manutenção e o incremento dos direitos humanos e da cooperação prevaleçam (BOGARDUS, 1960, p. 32).

A promoção da democracia, em Estados que ainda não a consolidaram, desenvolve-se a partir de programas de cooperação. Logicamente, ainda que dependentes majoritariamente de decursos endógenos, a comunidade internacional, por intermédio daquele instituto, pode promover esta democracia.

Cabe destacar que a Organização dos Estados Americanos (OEA) elaborou a Carta Democrática Interamericana, visando, especialmente, a consolidação e a reafirmação da democracia no continente americano, a partir de preceitos cooperativistas. Percebe-se o esforço, no continente americano, para com o respeito à democracia, formando, então, uma consciência coletiva, pautada na cooperação, de que o regime democrático vem a ser a melhor opção para a consolidação dos direitos humanos na região.

Em ambientes mais distantes, como na África e países árabes, vislumbram-se constantes esforços de toda a sociedade internacional, norteados pela cooperação internacional, para com a consolidação da democracia nos referidos locais. E o cunhado auxílio não se faz apenas dos países do Norte – historicamente mais desenvolvidos política e economicamente -, mas igualmente daqueles que se encontram em vias de desenvolvimento e, mais, das organizações internacionais (ABDENUR; SOUZA NETO, 2013).

Prova-se, a partir do apontado, que a promoção da democracia está no aporte basilar da própria cooperação internacional, especialmente pelo fato deste último instituto voltar-se, especificamente, à consolidação e efetivação dos direitos humanos – fato este que só consegue ser bem alcançado a partir de regimes democráticos.

Ademais, como ante exposto, existe uma conexão indispensável entre a democracia e os direitos humanos. Neste ponto, especificamente, a América Latina consolida-se como a única região em desenvolvimento que conta, em sua totalidade, com regimes democráticos. Não obstante, a democracia é afetada pelas características de sua sociedade heterônoma: a pobreza e a desigualdade põem, cotidianamente, à prova a estabilidade democrática e, também, a consolidação dos direitos humanos, dado o ataque direito ao direito à igualdade de seus cidadãos (PROGRAMA DE LAS NACIONES UNIDAS PARA EL DESARROLLO, 2004).

Apesar das expectativas depositadas em regimes democráticos para a efetivação dos direitos humanos, muitas delas encontram-se frustradas pelo fato das representações políticas e instituições públicas não cumprirem com seu papel. Por isso mesmo, em locais tão desiguais como a América Latina, o descrédito neste tipo de regime vem a ser uma constante.

Neste sentido, passa-se à análise da construção da democracia brasileira à luz dos direitos humanos.

  1. A CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA A PARTIR DOS DIREITOS HUMANOS

Para se compreender a importância da democracia frente aos direitos humanos, é imprescindível, em um primeiro momento, observar o substrato adequado para que este regime político erija-se. Assim sendo, diz-se que para se ter, de fato, a democracia – e aqui, pontuando especificamente à democracia representativa -, é importante que se observe, em um primeiro momento, a regulamentação jurídica, com regras claras e precisas, sobre a chamada competição eleitoral pelos assentos do poder, com o reconhecimento dos resultados pelos oponentes na corrida eleitoral. Em segundo lugar, destaca-se a necessaria participação massiva da sociedade, concretizada pela existência do sufrágio eleitoral – ainda que se estabeleça idade para o exercício da capacidade eleitoral – seja ela ativa e/ou passiva (SANTOS, 2017, p. 39).

Nesse sentido, o caso da construção democrática brasileira – ainda que, destaque-se, exista uma infinitude de peculiares na ascensão democrática na década de 80 – tem uma data definida, qual seja, o período de janeiro a abril de 1984, quando então ocorreu, a partir das massas, a campanha das Diretas Já. Neste sentido, milhares de brasileiros foram às ruas reivindicar a sua capacidade eleitoral passiva, requerendo, em última análise, o voto para a cadeira de Presidente da República (VILLA, 2014, p. 472).

Ainda, neste ponto, é importante esclarecer que a redefinição de democracia brasileira só se enraizou a partir de 1989, quando então, ocorrera a primeira eleição direta à presidência da República, uma vez que, como consequência do movimento supracitado, foi-se criado o Colégio Eleitoral para, então, de forma indireta, garantir com que a escolha do Presidente da República brasileiro fosse determinada, em 1985 – tendo, neste momento, Tancredo Neves saído vitorioso (DOCKHORN, 2020, p. 39).

Ainda que o Brasil encontre-se em uma verdadeira batalha para sair da teia das chamadas democracias frágeis da América Latina, é incontestável que o regime que a partir de então se estabeleceu vem a ser muito mais frutífero à consolidação dos direitos humanos que àquele que outrora se vivenciou. Para, então, ter-se uma correta compreensão acerca de tal cenário, passa-se, neste momento, à análise de tal período sombrio da história brasileira, especialmente frente às inúmeras violações dos direitos humanos

Em 1.o de abril de 1964, o Brasil adentrou ao período chamado de Ditadura Militar, quando então os militares vieram a tomar o poder político e instituíram um regime ditatorial baseado, no que importa e este trabalho, na repressão de muitos direitos humanos dos seus cidadãos – especialmente de seus direitos políticos e direitos de liberdade de expressão. Acontece que, ao longo dos 21 anos do regime ditatorial militar brasileiro (de 1964 a 1985), houve períodos de maior e menor repressão e violência (conhecidos como períodos de abertura e endurecimento), sendo que, a partir do Ato Institucional n.o 5[4], entre os anos de 1968 e 1974, o Brasil encontrou-se na fase ditatorial conhecida como Anos de Chumbo, nomenclatura utilizada por conta da repressão ter alcançado o mais alto grau do regime (onde até mesmo a tortura seria uma prática constante).

Primeiramente, deve-se lembrar que, ao final da Segunda Guerra Mundial, o Estado brasileiro adotou, desde logo, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e a Declaração Universal de Direitos Humanos (ambas de 1948). Pouco mais tarde, veio a participar de uma série de acordos de proteção dos direitos humanos, tais como: Convenção sobre Genocídio (1948); as quatro Convenções de Genebra e seus dois Protocolos Adicionais (1949); a Convenção sobre Refugiados (1951), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); a I Convenção Mundial sobre Direitos Humanos de Teerã (1968); e a II Convenção Mundial sobre Direitos Humanos de Viena (1993) (KEITH, 2019, p. 3).

Sem dúvidas, todo o empenho brasileiro mostrou-se determinante no desenvolvimento do sistema de proteção dos direitos humanos interamericano. Prova disso é que, após longos períodos de negociações, o Brasil, já na Nona Conferência Internacional Americana, em 1948, desenvolveu – juntamente com o auxílio de mais vinte países – e adotou a Carta da Organização dos Estados Americanos, a qual entrou em vigor em 13 de dezembro de 1951 e, no ordenamento jurídico pátrio, fora introduzida pelo Decreto n.o 30.544, de 14 de fevereiro de 1952.

Em âmbito regional, o Brasil aderiu ao Protocolo Relativo à Aboliação da Pena de Morte, de1986 ;a Convenção Interamericana para Prevenir e Sancionar a Tortura, de 1987; a Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), de 1985;  a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, de 1994; a Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, de 1999; e a Convenção contra toda Forma de Discriminação e Intolerância, de 2013 (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS).

No que tange à Convenção Americana sobre Direitos Humanos(Pacto de São José da Costa Rica), o Brasil aprovou-o pelo Decreto Legislativo 27, de 25 de outubro de 1992, tendo sido promulgado no mesmo ano, pelo Decreto 678, de 06 de novembro. Igualmente, o país aprovou o seu Protocolo Adicional,Protocolo de São Salvador, pelo Decreto Legislativo 56, de 19 de abril de 1995 e promulgo-o pelo Decreto 3.321, de 30 de dezembro de 1999 (PIOVESAN; FACHIN; MAZZUOLI, 2019, p. 2).

A partir de então, o Brasil encontra-se submetido às condições da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), devendo obediência aos princípios desse órgão na busca pela promoção e defesa dos direitos humanos, bem como vinculando-o à estabilidade democrática, especialmente para o devido cumprimento aos ditos direitos. Determinante a este estudo é relatar que, a partir de então, o Brasil estará submetido a todos os meios passíveis de proteção dos direitos humanos previstos por esse órgão.

O Brasil reconheceu, ainda, a competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)em dezembro de 1998, por meio do Decreto Legislativo n.o 89, garantindo a jurisdição, em plano internacional regional, dos direitos humanos aos indivíduos sob sua jurisdição, quando as instâncias nacionais se demonstrarem insuficientes em sua proteção (RAMOS, 2013, p. 239).

Tendo demonstrado o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana deDireitos Humanos, o Brasil poderá vir a ser demandado, respeitadas as determinações do instituto em questão, e não poderá se valer da escusa da incompatibilidade da norma convencional com o direito interno, uma vez que, tal reconhecimento vem a ser cláusula pétrea e demanda uma devida adequação do direito interno para com a responsabilidade assumida em plano internacional.

A partir de então, alguns casos emergiram na órbita interamericana acerca do regime ditatorial brasileiro que, em muito, auxiliaram na construção da democracia brasileira e, especialmente, na qualidade democrática. Assim, passa-se à análise dos casos em alusão.

  1. OS ATOS DITATORIAIS E OS CASOS BRASILEIROS NA CORTE INTERAMERICANA
  • O CASO JULIA GOMES LUND E OUTROS

O Caso Julia Gomes Lund e Outros, inegavelmente, vem a ser emblemático em termos de Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e, igualmente, à qualidade democrática brasileira que se busca a partir dos direitos humanos, visto trazer à tona toda a historicidade brasileira do período da Ditadura Militar, localizado entre os anos de 1964 a 1985, quando então a censura e a repressão de muitos direitos, tidos como fundamentais, tornou-se uma constante.

Nesse contexto, também, crimes de repressões políticas foram realizados por parte daqueles que trabalhavam para e com o governo militar, sendo que o maior massacre se registrou no caso da Guerrilha do Araguaia, tendo sido a única tentativa de guerrilha consistente nos anos da ditadura militar (CHIAVENATO, 2014, p. 262).

Não bastasse o cenário caótico de violação dos direitos humanos, à época, o governo brasileiro promulgou uma lei, em 1979, que tratava sobre a concessão de anistia àqueles que tinham praticado crimes políticos e/ou crimes conexos com esse, ficando conhecida como Lei de Anistia (Lei no 6.683/1979). Ademais, o governo, talvez para se isentar de responsabilidade, destruiu a maioria dos documentos que versavam sobre as principais repressões – especialmente no que condiz à Guerrilha do Araguaia -, tendo, igualmente, desaparecido com os corpos das pessoas assassinadas, impossibilitando com que os familiares das vítimas buscassem a devida e adequada reparação pelos feitos (RECONDO, 2018, p. 115).

Neste diapasão, em 1995, 10 anos após findada a Ditadura Militar no Brasil, a partir de um dossiê organizado pelos familiares dos desaparecidos políticos à época, fora promulgada a Lei no 9.140, contabilizando 136 desaparecidos políticos, cujos quais 61 desapareceram em virtude das operações militares contra a Guerrilha do Araguaia.

Ocorre que, se de um lado, em 1995, o Estado brasileiro veio a reconhecer os desparecidos políticos, por outro, algumas situações contribuíram para a manutenção, em segredo, de dados sobre todas as possíveis vítimas do massacre, tais como: o modus operandi durante as operações militares contra a Guerrilha; a negativa das Forças Armadas em fornecer informações sobre os eventos ali ocorridos, bem como os documentos oficiais que poderiam demonstrar suas atividades; e a promulgação, em 2005, da Lei no 11.111, que dificultou o acesso a documentos públicos que supostamente conteriam informações cujo sigilo, de até 30 anos, renováveis por igual período, seria imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Ante o exposto, sem o devido reconhecimento, ainda que perante um regime democrático já instaurado desde 1985, o Brasil não fora capaz de reverter os casos de violação nas ações desenroladas contra a Guerrilha do Araguaia e, assim o caso chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

O trâmite do caso iniciou-se em 07 de agosto de 1995, quando então viera o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a HumanRightsWatchAmericas apresentou a petição em nome dos desaparecidos e seus respectivos familiares (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2008).

A petição apresentada pontuava, em suma, o seguinte: o desaparecimento de integrantes da chamada Guerrilha do Araguaia, entre os anos de 1972 a 1975; a falta de investigação e punição das pessoas que deram causa aos desaparecimentos; e a falta de informações acerca das campanhas militares, realizadas para combater a guerrilha, sobre as circunstâncias de óbito dos combatentes e sobre o paradeiro de seus corpos.

Em 31 de outubro de 2008, a Comissão expediu o Relatório de Mérito no 91/08, determinando que o Estado brasileiro havia detido, torturado e desaparecido com os membros do PCdoB e dos camponeses listados naquele relatório, não tendo o Estado brasileiro, à luz dos termos da Lei de Anistia, levado a cabo nenhuma investigação para julgar e sancionar os responsáveis pelos desaparecimentos forçados. Ademais, pontuou que os recursos judiciais de natureza civil para a obtenção de informações sobre os fatos não foram efetivos para garantir aos familiares o acesso à informação e, por fim, que o desaparecimento forçado faz vítimas, a impunidade dos seus responsáveis e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos.

Além disso, a Comissão considerou que o Estado havia violado todos os artigos referidos na petição apresentada pelos representantes das vítimas e determinou que o Brasil adotasse algumas medidas: a) garantir que a Lei de Anistia não continuasse representando obstáculo para a persecução penal de graves violações de direitos humanos; b) determinar a responsabilidade penal pelos desaparecimentos forçados das vítimas da Guerrilha do Araguaia, mediante uma investigação judicial completa e imparcial dos fatos, visando identificar os responsáveis por tais violações e sancioná-los penalmente, levando em conta que tais crimes não são suscetíveis de anistia e, igualmente, são imprescritíveis; c) sistematizar e publicar todos os documentosrelacionados com as operações militares contra a Guerrilha do Araguaia; d) fortalecer, com recursos financeiros e logísticos, os esforços já empreendidos na busca dos restos mortais dos desaparecidos; e) outorgar uma reparação aos familiares das vítimas, que inclua o tratamento físico e psicológico, assim como a celebração de atos de importância simbólica que garantissem a não repetição dos delitos cometidosno caso e o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelo desaparecimento dasvítimas e sofrimento de seus parentes; f) implementar, em prazo razoável, programasde educação em direitos humanos permanentes dentro das Forças Armadas brasileiras; e g) tipificar, no ordenamento interno, o crime de desaparecimento forçado, segundo o disposto em instrumentos internacionais.

Como os representantes já haviam solicitado, em 22 de dezembro de 2008, a submissão do caso à Corte, e tendo a Comissão entendido a falta de implementação satisfatória, por parte do Estado brasileiro, das recomendações contidas no Informe n.o 91/08, decidiu-se, durante seu 134.o Período Ordinário de Sessões, a submissão do caso à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na data exata de 26 de março de 2009.

A Comissão, ao submeter a questão à Corte, pontuou que o fato poderia representar uma importante oportunidade para consolidar a jurisprudência interamericanasobre as leis de anistia, em especial em relação aos desaparecimentos forçados e asexecuções extrajudiciais, revelando, ainda, as obrigações dos Estados em possibilitar o conhecimento da verdade à sociedade, além de ter o dever de investigar, processar e punir os violadores dos direitos humanos. Por fim, previu a possibilidade da Corte afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia com a Convenção Americana.

Após um longo processo, respeitados todos os princípios fundamentais processuais, na data de 24 de novembro de 2010, a Corte prolatou sua decisão. Nesta, declarou que: a) as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, não podendo, além, representar um obstáculo para a investigação dos fatos do caso em tela; b) o Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e pela violação dos direitos elencados nos artigos 3.o, 4.o, 5.o e 7.o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; c) o Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à referida Convenção Americana, interpretando e aplicando a Lei de Anistia também a graves violações de direitos humanos; d) o Estado é responsável pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão, pela afetação do direito a buscar e receber informação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido; e) o Estado é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares indicados no caso.

Além disso, decidiu, por unanimidade que o Estado: 1) deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presentecaso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penaise aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja; 2) deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares; 3) deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o caso, pagar o montante estabelecido; 4) deve realizar as publicações ordenadas; 5) deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso; 6) deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas; 7) deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos. Enquanto cumpre com esta medida, deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno; 8) deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma; 9) deve pagar as quantias fixadas na presente Sentença, a título de indenização por dano material, por dano imaterial e por restituição de custas e gastos; 10) deve realizar uma convocatória, em, ao menos, um jornal de circulação nacional e um da região onde ocorreram os fatos do presente caso, ou mediante outra modalidade adequada, para que, por um período de 24 meses, contado a partir da notificação da Sentença, os familiares das pessoas aportem prova suficiente que permita ao Estado identificá-los e, conforme o caso, considerá-los vítimas nos termos da Lei n.o 9.140/95 e da Sentença internacional em questão; 11) deve permitir que, por um prazo de seis meses, contado a partir da notificação da presente Sentença, os familiares dos senhores Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias de Oliveira («Pedro Carretel»), Hélio Luiz Navarro de Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, possam apresentar-lhe, se assim desejarem, suas solicitações de indenização utilizando os critérios e mecanismos estabelecidos no direito interno pela Lei n.o 9.140/95 (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010).

Debate-se, finalmente, segundo os termos da própria decisão advinda da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que o Brasil violou sobremaneira os direitos humanos das vítimas e dos familiares daqueles que foram desaparecidos, forçadamente, durante o período da Ditadura Militar. E, por mais que em solos nacionais o entendimento – especialmente na interpretação da Lei de Anistia – seja diferente, o Brasil encontra-se numa via de mão única na afirmação e concretização dos direitos humanos, não podendo sobrepor, aos direitos humanos, os entendimentos arcaicos de suas instituições jurídicas.

  • O CASO VLADIMIR HERZOG E OUTROS

O caso Herzog é um dos precedentes mais paradigmáticos no que diz respeito às atrocidades cometidas no período ditatorial no Brasil, por trazer à baila a crueldade doscrimes praticados pelos próprios agentesestataiscontra supostos dissidentes políticos e revelar a duradoura impunidade dos perpetradorese conivência do Estado para com os fatos em questão, que envolvem a detenção arbitrária, tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog em outubro de 1975, ocorrida nas dependências do Exército brasileiro. A petição que objetivava o reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado brasileiro fora apresentada em julho de 2009,pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional, Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos, Centro Santos Dias da Arquidiocese de São Paulo e Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo. A CIDH declarou o caso admissível em novembro de 2012.

Por um lado, os peticionários afirmaram que durante os anos ditatoriais no Brasil, as próprias forças do Estado violavam, de forma generalizada e sistemática, os direitos humanos de diversos grupos, em especial de dissidentes políticos e jornalistas. Somando-se a isto, apontou-se igualmente a censura prévia imposta à imprensa à época, a fim de resguardar as “aparências” enganosas da ditadura, o que culminou no status de Vladimir Herzog como inimigo do Estado, já que, como jornalista e diretor do canal TV Cultura, publicou e disseminou diversas reportagens desfavoráveis ao governo (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2015).

Narrou-se que em um fatídico dia de outubro de 1975, Herzog foi convocado a prestar declarações na sede do Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército (DOI-CODI), no qual a vítima compareceu espontaneamente e acabou detida de forma arbitrária, isto é, sem a respectiva ordem emitida por autoridade judicial competente.Por conseguinte, divulgou-se, de forma enganosa, que Vladimir havia se suicidado em sua cela nas dependências do DOI-CODI, informação que buscava deixar os perpetradores desta barbárie impunes. Contudo, a verdadeira causa de seu falecimento foi a prática de tortura seguida de execução extrajudicial pelos agentes militares estatais.

Por outro lado, o Estado brasileiro alegou a adoção de medidas em âmbito interno, que supostamente teriam reconhecido sua responsabilidade pelos fatos relacionados a Herzog, através de sentença prolatada pela Justiça Federal em 1978. Sustentou-se, ademais, a promoção de medidas de reparação, não repetição e preservação do direito à memória em relação ao caso ora discutido, citando-se a reparação monetária outorgadaem 1996 à viúva da vítima, Clarice Herzog, o livro intitulado “Direito à Memória e à Verdade”, desenvolvido pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos em 2007 e a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2012. Sob este último enfoque, arguiu-se que a CNV elaborou relatório sobre o caso de Vladimir, admitindo a participação de agentes estatais na detenção ilegal, tortura e assassinato do jornalista e reconhecendo o caso como uma grave violação de direitos humanos perpetrada sob a custódia do Estado.

Assim, em seu Relatório de Mérito, a Comissão Interamericanareafirmou o contido no importante precedente da Corte IDH, caso Gomes Lund e outros,em relação à incompatibilidade da Lei de Anistia com a CADH e à obrigação estatal de exercer controle de convencionalidade em consonância com as normas convencionais de direitos humanos. A CIDH reconheceu que o Estado violou os direitos à vida, liberdade de expressão, justiça, associação e proteção contra prisão arbitraria, contidos na Declaração Americana; direitos à integridade pessoal, garantias judiciais e proteção judicial, previstos na CADH; e, finalmente, que o Brasil não cumpriusuas obrigações estatais de prevenir e punir a tortura em âmbito judicial e de assegurar um julgamento justo e imparcial sobre as denúncias de tortura, consagradas na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.

Neste sentido, a Comissão emitiu as seguintes recomendações ao Brasil: 1. Determinar a responsabilidade criminal pelos delitos cometidos contra Herzog, levada a cabo através de investigação imparcial e punição penal; 2. Adotar medidas que garantissem que a Lei de Anistia não representasse obstáculo para a apuração de graves crimes contra os direitos humanos; 3. Conceder reparação aos familiares da vítima; 4. Reparar as violações reconhecidas pela CIDH nos aspectos material e moral (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2015).

Contudo, em abril de 2016, a Comissão submeteu o caso à Corte IDH, em relação aos feitos ocorridos após 10 de dezembro de 1998 (data de aceite da competência contenciosa da Corte pelo Brasil), por considerar que o Estado não havia cumprido tais recomendações. A CIDH argumentoua necessidade deobtenção de justiça e de resolução das questões adjacentes ao caso, nomeadamente a ordem pública interamericana, pleiteando a declaração de responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelas violações descritas em seu Relatório de Mérito.

Após o regular trâmite na Corte, com a estrita observância às garantias do devido processo legal e contraditório, o órgão judicial concluiu que o fato relativo à Herzog caracterizava-se como crime contra a humanidade, norma imperativa do direito internacional (jus cogens), na medida em que constituía parte de um plano de ataque sistemático e generalizado contra os opositores da ditadura, em especial jornalistas e supostos membros do Partido Comunista Brasileiro. Descreveu-se a existência de um aparato de repressão organizado e estruturado, que objetivava eliminar fisicamente a oposição democrática ou partidária ao regime ditatorial, com o emprego de práticas aprovadas e monitoradas pelo alto escalão do Exército e do Poder Executivo.

Desta forma, a Corte concluiu que o Estado violou o direito à verdade em relação as vítimas (familiares de Herzog), pois não se esclareceram judicialmente as violações de direitos humanos do caso e não houve responsabilização individual dos torturadores e assassinos da vítima. Além disso, considerou-se que a versão mentirosa de suicídio, dada à época, afetou o direito à integridade pessoal dos familiares de Vladimir.

Neste sentido, a Corte Interamericana declarou, por unanimidade, a responsabilidade do Brasil pela violação aos direitos de garantias e proteção judicial previstos na CADH e obrigação de prevenir e sancionar a tortura, como preconizado pela Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Determinou-se que o Estadobrasileiro deveria: 1. Reiniciar, com a devida diligência, a investigação e processamento dos responsáveis pela tortura e morte de Herzog; 2. Adotar medidas para reconhecer a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, sem exceções; 3. Realizar um ato público de reconhecimento de sua responsabilidade internacional em respeito à memória de Vladimir Herzog; 4. Publicar a sentença na íntegrano Diário Oficial e nos sites oficiais do Ministério da Justiça e Cidadania e do Exército Brasileiro; 5. Realizar o pagamento dos valores fixados pela sentença à título de danos material e imaterial; 6. Apresentar informações, no prazo de um ano, sobre as medidas de cumprimento da sentença.(CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2018).

Atualmente, o caso Herzog e outros vs. Brasil encontra-se na etapa de supervisão do cumprimento de sentença pela Corte IDH. As reparações pendentes de cumprimento são àquelas enumeradas nos itens 1, 2, 3 e 5 do parágrafo acima, enquanto o item 4 foi considerado como parcialmente cumprido.Por fim, a Corte considerou que a manifestação do Estado sobre a impossibilidade de reabrir a investigação da morte de Herzog, em razão da Lei de Anistia de 1979, constitui um desacato às determinações da sentença e tem como efeito a perpetuação da impunidade relativa às graves e sistemáticas violações de direitos humanos constatadas no caso e na época em questão(CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2021).

  • O CASO GABRIEL SALES PIMENTA

O mais recente caso do período ditatorial a demandar atenção do Sistema Interamericano é o que envolve o assassinato do advogadoGabriel Sales Pimenta, ocorrido no estado do Pará, em julho de 1982. O caso teve início na CIDH em novembro de 2006, quando a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Centro pela Justiça e Direito Internacional apresentaram petição requerendo a declaração de responsabilidade internacional do Estado pelo crime cometido contra o defensor de direitos humanos.Sob este prisma, a CIDH declarou o caso admissívelem outubro de 2008.

Em síntese, Gabriel Pimenta era advogado popular do Sindicato de Trabalhadores Rurais e da CPT à época de seu falecimento. Seus esforços permitiram a histórica cassação de uma liminar que determinava o despejo de moradores de uma área objeto de disputa por fazendeiros no Pará. Os peticionários sustentaram que a atuação de Pimenta em favor dos trabalhadores rurais lhe rendeu uma série de ameaças e culminou emseu trágico desfecho, que não foi diligentemente investigado e punido pelo aparato estatal. Até a apresentação da petição à CIDH, nenhum dos envolvidos na morte havia sido responsabilizado. Ademais, arguiu-se a existência de um padrão generalizado e sistemático de violência no contexto de movimentos sociais de luta pela terra, correlacionado à impunidade dos perpetradores de tais crimes(COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2019).

Por sua vez, o Estado brasileiro negou a existência de violação a direitos previstos na Declaração Americana[5]e Convenção Interamericana, argumentando que a demora no processamento do crime ocorreu por motivos fora de seu controle e, ainda, que a decisão que decretou a prescrição foi emitida em consonância aos direitos e garantias processuais dos acusados.

Ao analisar o mérito do caso, a Comissão entendeu pela existência de um contexto de violência contra defensores de direitos trabalhistas à época do fato. Em sua fundamentação, a CIDHmencionou o Relatório Final da Comissão Camponesa da Verdade, órgão auxiliar da Comissão Nacional da Verdade, para concluir que entre 1961 e 1988 o número de assassinatos de defensores de direitos humanos era expressivo. Além disso, relacionou-se a concentração fundiária com a violência no campo, apontando-se a omissão e falha estatal em garantir uma série de direitos aos grupos vulneráveis envolvidos neste caso.

Por derradeiro, a CIDHafirmou veemente que o trabalho dos defensores de direitos humanos fortalece e consolida o regime democrático e que a impunidade pelo assassinato de Sales Pimenta não era um fato isolado,mas parte de um contexto de violência sistemáticatolerada pelo Estado. Neste sentido, concluiu-sepela responsabilidade internacional do Brasilno que tange a violação dos direitos à vida, à justiça e à liberdade de associaçãoprevistos na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; e direitos à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Recomendou-se ao Estado: a reparação integral a ser concedida aos familiares das vítimas, investigação e punição dos fatos em questãorespeitando um prazo razoável, bem como a adoção de medidas de não repetição, que incluíam o fortalecimento do Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2019).

A CIDH submeteu o caso à Corte IDH em 04 de dezembro de 2020, pleiteando o reconhecimento da responsabilidade internacional do Brasil em relação aos fatos que começaram ou continuaram ocorrendo após dezembro de 1998 (data do aceite da competência da Corte IDH pelo Estado).Neste sentido, a Comissão ressaltou expressamente a falta de devida diligência na investigação da morte de Gabriel e a denegação de justiça no caso concreto (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2020).

A Corte IDH celebrou, de maneira virtual, a audiência pública do caso Sales Pimenta vs. Brasil em março de 2022, durante seu 147º Período Ordinário de Sessões, a qual contou com o depoimento de testemunhas e peritos, estes últimos especialistas nas áreasde direito e processo penal e direitos humanos(CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2022).No momento de elaboração do presente artigo, encontra-se pendente o julgamento do mérito do referido casopela Corte. Não obstante, cumpre destacar que em tal decisão, a Corte terá a grandeincumbência de se manifestar acerca da violência generalizadano contexto da reforma agrária no Brasil durante os anos de ditadura e da omissão estatal na investigação e processamento dos fatos referentes ao assassinato do defensor de direitos humanos Gabriel Sales Pimenta.

  1. CONCLUSÃO

Em primeiro lugar, ressalta-se que o principal objetivo do presente artigo consistiuno exameda qualidade democrática brasileira, com ponto de partida em concepções doutrinárias acerca do vocábulo democracia e na análise da construção democrática no Brasil à luz dos direitos humanos.

Em segundo lugar, passou-se àinvestigação dos tratados de direitos humanos aplicáveis ao Estado brasileiro e pertinentes à temáticado regime ditatorial, seguida do estudo aprofundado de casos concretos no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos que versaram sobre violações de direitos ocorridas neste período, quais sejam, 1. Julia Gomes Lund, 2. Vladimir Herzog e 3. Gabriel Sales Pimenta.

Neste sentido, infere-se a atuação da Comissão e Corte Interamericanas como de suma importância para a concretização dos regimes democráticosem âmbito regional. Sob o enfoque específico brasileiro, nos Casos Gomes Lundvs. Brasil e Herzog vs. Brasil, vislumbrou-se que a Lei de Anistia constitui um entrave na efetiva proteção aos direitos humanos previstos nos tratados ratificados pelo país.

Apesar das determinações da Corte IDH sobre a incompatibilidade de tal lei com a CADH, o Estado resiste em adotar medidas que possibilitem a resolução das demandas em âmbito nacional e o cumprimento das reparações ordenadas pelo órgão judicial internacional.

Por derradeiro, no caso Sales Pimenta vs. Brasil, omais recente a ser objeto de exame pela Corte IDH, cuja sentença se encontra pendente, verifica-se a permanência de questões abordadas nos casos anteriores, o que sublinha a necessidade de reavaliação da conduta estatal após a redemocratização, já que o Brasil peca ao quedar-se inerte e ignorar determinações oriundas de sentenças internacionais.

É neste cenário que o Sistema Interamericano acerta em persistir na admissão e julgamento dos casos ocorridos durante a ditadura militar brasileira, a fim de revisitar o passado autoritário e buscar a consolidação de mecanismos de não repetição e de garantia e proteção judicial às vítimas, para colocar um ponto final na impunidade e na tolerância promovida pelo Estado durante anos a fio.

De tal forma, infere-se que a qualidade democrática acaba por ser diretamente proporcional não apenas ao esforço do Estado em, de fato, vincular-se, na órbita jurídica internacional, aos documentos consolidadores dos direitos humanos, mas de fazer com que tais direitos sejam uma realidade constante e de permanente efetivação à população nacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe de 64 e a Ditadura Militar. 3ª ed. São Paulo: Moderna, 2014.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório de Mérito nº 91/08.Caso 11.552. Julia Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia), Brasil.31 de outubro de 2008.

___________________. Relatório de Mérito nº 71/15. Caso 12.879. Vladimir Herzog e Outros, Brasil. 28 de outubro de 2015.

___________________. Relatório de Mérito nº 144/19. Caso 12.675. Gabriel Sales Pimenta, Brasil. 28 de setembro de 2019.

___________________. Documentos Básicos em Matéria de Direitos Humanos no Sistema Interamericano. Disponível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/jsForm/?File=/pt/cidh/mandato/dbasicos.asp. Acesso em: 31 de março de 2022.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil.Sentença de 24 de novembro de 2010.

___________________. Caso Herzog e Outros vs. Brasil. Sentença de 15 de março de 2018.

___________________. Caso Herzog e Outros vs. Brasil. Resolução de supervisão de cumprimento de sentença de 30 de abril de 2021.Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/herzog_y_otros_30_04_21_spa.pdf>. Acesso em 20 de abril de 2022.

___________________.Corte Interamericana de Derechos Humanos celebrósu 147 Período Ordinario de Sesiones. 10 de abril de 2022.Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/comunicados_prensa.cfm?lang=es&n=1808>. Acesso em 18 de abril de 2022.

DOCKHORN, Gilvan Veiga; NUNES, João Paulo Avelãs; KONRAD, Diorge Alceno (Orgs.). Brasil e Portugal: ditaduras e transição para a democracia. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2020.

FERRAJOLI, Luigi. La democracia a través de losderechos. Madrid: Editorial Trotta, 2014.

KEITH, Linda Camp. The International Human Rights Regime: Commitment and Compliance. In: DIGIACOMO, Gordon; KANG, Susan L. The Institutions of Human Rights. Toronto: Universityof Toronto Press, 2019.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. A CIDH apresenta caso sobre o Brasil perante a Corte Interamericana. 17 de dezembro de 2020. Disponível em: <https://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2020/304.asp>. Acesso em: 17 de abril 2022.

PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina Girardi; MAZZUOLI, Valeriode Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

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VILLA, Marco Antonio. Ditadura à brasileira – 1964-1985: A democracia golpeada à esquerda e à direita. São Paulo: LeYa, 2014.

Citas

[1]Doutora em Direito Internacional (PUC-SP). Professora do Programa de Pós-Graduação em Governança, Tecnologia e Inovação (Universidade Católica de Brasília). Professora do Programa de Pós-Graduação do Ambra University. Coordenadora da Clínica de Direito Internacional (UNICURITIBA). Professora dos cursos de Direito e Relações Internacionais (UNICURITIBA).Membro e parecerista da Academia Brasileira de Direito Internacional.

[2]Pós-graduanda em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba). Integrante da Clínica de Direito Internacional (UniCuritiba).

[3] Este aporte clássico remete – não obstante a existência de outros – aos seguintes nomes: Aristóteles, Platão, Rousseau, Bobbio, Schumpeter e Waldron.

[4] Conhecido por AI-5, o ato fora responsável pelo endurecimento da censura no Regime Militar, estendo a fiscalização prévia dos artigos e reportagens de imprensa, às letras de músicas, peças teatrais e cenas de filme. Além disso, possibilitou que a ditadura mostrasse sua faceta mais cruel contra os dissidentes e contrários ao Regime Militar.

[5]Apesar da Declaração Americana dos Direitos do Homem ser um documento não vinculante, a CIDH afirmou, no Relatório de Mérito nº 144/19, que fatos relevantes do caso ocorreram em momento anterior à adesão do Brasil à CADH (1992) e, ainda, que o Estado pode ser responsabilizado internacionalmente por ações ou omissões que violem a Declaração Americana, interpretada pela Comissão como incorporadora de obrigações de garantia aos Estados (CIDH, 2019,§ 45, 47 e 49)

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