Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente

Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente
RIDCA - Edición Nº2 - Derecho Internacional

Fernando Tarapow - Priscila Caneparo. Directores

20 de diciembre de 2022

O sistema prisional brasileiro: Presídio Central de Porto Alegre e a denúncia na CIDH.
El sistema penitenciario brasileño: la Cárcel Central de Porto Alegre y la denuncia ante la CIDH

Autor. Robson Luis Flores Dias. Brasil

Robson Luis Flores Dias[1]

 

RESUMO

Este estudo tem por objetivo averiguar os aspectos gerais da denúncia realizada na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sobre os problemas vivenciados no Presídio Central de Porto Alegre, e a consequente violação aos direitos humanos, em consonância com a decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede cautelar, já que o mérito ainda não foi discutido pela mais alta Corte. Logo, busca-se refletir sobre o sistema prisional brasileiro e as mazelas do cárcere, que violam os direitos humanos consagrados em normativas ratificadas pelo Brasil, e também os direitos fundamentais consagrados no texto constitucional. A pesquisa classifica-se como dedutiva, descritiva e bibliográfica. Constata-se que o todo o sistema prisional brasileiro enfrenta problemas como a superlotação, a insalubridade, a inexistência ou insuficiência das assistências preconizadas na Lei de Execução Penal, a falta de trabalho, dentre outros, a ponto do Supremo Tribunal Federal reconhecer o estado de coisa inconstitucional, dada a magnitude dos problemas. E, em que pesem as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, emitidas em 2013, quando da primeira denúncia por instituições do Rio Grande do Sul, pouco ou quase nada foi feito pelo Estado brasileiro, tanto que nova denúncia foi concretizada em 2017. Pendente de apreciação, espera-se que o Estado brasileiro seja responsabilizado junto à comunidade internacional, para que faça valer os direitos mínimos dos apenados no Presídio Central de Porto Alegre, apontado como o pior estabelecimento prisional do país em virtude das graves violações aos direitos humanos.

 

Palavras-chave: Sistema Prisional. Direitos Humanos. Violação. Presídio Central de Porto Alegre. Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

 

1 INTRODUÇÃO

 

            O Brasil enfrenta, já há alguns anos, sérios problemas no sistema prisional, sendo a superlotação, as condições insalubres, a insuficiência das assistências ao preso, a precariedade da alimentação, educação e trabalho, dentre outros problemas, comumente discutido por determinados segmentos da sociedade e, não raras vezes, debatidos nos mais diversos meios de comunicação.

             Um caso, em específico, chama a atenção. Trata-se do Presídio Central de Porto Alegre, recentemente renomeado para “Cadeia Central de Porto Alegre”, estabelecimento prisional inaugurado no final da década de 1950 e que foi reconhecido pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário o pior presídio do país.

Quando projetado, o Presídio Central de Porto Alegre seria construído entre bairros periféricos, com celas individuais, contando com banheiros coletivos no final dos corredores, ou seja, um modelo propício à ressocialização do agente infrator. Porém, com o passar dos anos, o crescimento da criminalidade e a consequente superlotação do estabelecimento mudou esse cenário. Esgoto a céu aberto, alimentos em decomposição na cozinha, doenças infectocontagiosas, dentre outros tantos problemas são, na atualidade, o cenário que se encontra no Presídio Central de Porto Alegre.

Estes problemas culminaram, no ano de 2013, na realização de uma denúncia, pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS e outros, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos – OEA.

Ocorre que mesmo com o deferimento de Medida Cautelar pela referida Organização, os problemas no Presídio Central de Porto Alegre não apenas persistiram, mas agravaram, o que culminou em nova denúncia no ano de 2017, um ano após o Supremo Tribunal Federal conceder liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347/DF, destacando o estado de coisa inconstitucional no sistema prisional brasileiro, com um todo.

Portanto, o artigo tem por objetivo averiguar os aspectos gerais da denúncia realizada na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sobre os problemas vivenciados no Presídio Central de Porto Alegre, e a consequente violação aos direitos humanos, em consonância com a decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede cautelar, já que o mérito ainda não foi discutido pela mais alta Corte. E, como objetivos específicos busca-se compreender o papel da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; apontar alguns casos envolvendo o sistema prisional levados à Comissão nos últimos anos; identificar os fundamentos da decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou o estado de coisa inconstitucional; e, ainda, demonstrar os problemas do Presídio Central de Porto Alegre, que culminaram em duas denúncias à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

 

2. COMPETÊNCIAS DA COMISSÃO IINTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS  

 

O marco inicial do Sistema Interamericano de Direitos Humanos ocorreu com a Carta da Organização dos Estados Americanos (Carta de Bogotá) em 1948, na 9º Conferência Interamericana, mesma conferência em que foi celebrada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, anterior a Convenção Americana de 1969, a qual permanece como instrumento regional para os Estados que não ratificaram a Convenção Americana (MAZZUOLI, 2021).

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos é formado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Todavia, relembra Guerra (2013, p. 40) que “não se pode deixar de mencionar a Organização dos Estados Americanos e a Carta da OEA como sendo o documento que consagram […] o funcionamento do sistema, além de contemplar uma carga axiológica em favor dos direitos dos indivíduos”. Contudo, é com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos que se firma o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, com seus direitos e deveres expostos na convenção.

Dando seguimento, é preciso contextualizar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Criada em 1959, é um órgão que faz parte da Organização dos Estados Americanos, representando, portanto, todos os Estados os quais integram a Organização dos Estados Americanos.

Exposta na segunda parte da Convenção Americana, possui a competência junto com a Corte Interamericana por conhecer os assuntos que sejam relacionados ao cumprimento da Convenção de Direitos humanos entre os Estados-Partes (TRINDADE, 2012).

Teve seu surgimento por força da Resolução VIII da V reunião de consulta dos ministros de relações exteriores. Inicialmente recebeu poucas atribuições, as quais foram aumentando conforme ocorreram reuniões entre membros das relações exteriores entre os países signatários, culminando na II Conferência Interamericana Extraordinária, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1965 na ampliação dos poderes da Comissão, passando esta a ter competência para o recebimento de petições e demais denúncias de violações de Direitos Humanos (TRINDADE, 2012).

A matéria da Comissão Interamericana de Direitos Humanos legitima a todos os Estados-Membros da Convenção Americana. Além disso, alcança também todos os Estados-Membros da Organização dos Estados Americanos, conforme Declaração Americana de 1948. Explica Piovesan (2010) que são sete membros, os escolhidos para compor a Comissão, tendo estes que observar reputação ilibada e notória saber jurídico principalmente voltado para os Direitos Humanos. Os membros devem fazer parte dos Estados Membros e são eleitos por um período de quatro anos, podendo se reeleger mais uma vez.

Cada governo poderá propor até três candidatos, nacionais do Estado que os propuser ou de qualquer outro Estado-Membro da organização dos Estados Americanos. Quando for proposta uma lista com três candidatos, pelo menos um deles deve ter a nacionalidade diversa do Estado proponente (GUERRA, 2013).

Sobre as funções da Comissão, cabe informar que a função principal é a de promover a observância e a defesa dos direitos humanos. Em suma, compete à Comissão incentivar a consciência dos direitos humanos dos povos da América; formular recomendações aos estados para que estes protejam os direitos humanos no âmbito interno e garantidos nas Constituições dos respectivos Estados. Proporcionar estudos e relatórios, bem como solicitar pareceres e informações dos Estados sobre direitos humanos, prestar assessoramento e consulta aos estados membros acerca da matéria; e apresentar relatório sobre as atividades a Assembleia geral da organização dos Estados Americanos, a teor do que dispõe o art. 41 da Convenção Americana de Direitos Humanos (GUERRA, 2013).

A Comissão atua realizando estudos e relatórios prevendo e orientando a adoção de medidas para garantia dos direitos humanos. Por isso entende-se que a comissão possui as funções de conciliação entre governo e grupos sociais, e assessora quando ajuda os Estados com sugestões de implementações de políticas públicas de proteção aos direitos humanos. E, ainda, critica, quando após estudo de violação em algum país signatário perceba-se que realmente ocorreram violações aos direitos tutelados (PIOVESAN, 2010).

Outrossim, também exerce a função de promotora, visto que a Comissão é responsável por promover estudos que fomentem a memória aos direitos humanos, bem como de protetora, visto que a mesma possui autonomia para intervir quando ocorre uma queixa de violação de direitos humanos e em sendo esta comprovada, pode a comissão de ofício suspender a ação realizada pelo Estado que fere os direitos humanos, bem como solicite relatórios apresentando informações acerca das violações praticadas (PIOVESAN, 2010).

Registre-se, ainda, que cabe também a Comissão examinar as denúncias realizadas, desde que os países sejam parte de Convenção Americana. Desse modo, a comissão tem autonomia, podendo, portanto, sanar o conflito antes de ser chamada ao plano internacional para prestar esclarecimentos (TRINDADE, 2013).

Relembra Guerra (2013) que qualquer pessoa, grupo ou entidade governamental, de acordo com o artigo 44, pode apresentar petições contendo as denúncias de violação a Convenção Americana. Porém, diferente do que ocorre no Sistema Europeu. Não há como reivindicar direitos diretamente à corte, devendo primeiro passar pela Comissão Interamericana. Contudo, igualmente ao Sistema de Proteção Europeu a regra de esgotamento de todas as vias recursais não é absoluta, cabendo em casos de violações generalizadas socorrer-se a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (TRINDADE, 2013).

Destarte, a Comissão atua com discricionariedade na pessoa dos Secretários da Comissão, responsável pelos recebimentos das denúncias, analisando os atos mediante conveniência e oportunidade. Recebida a denúncia, o Estado é chamado para apresentar as contrarrazões para a Comissão. Lembrando que o secretário do país em questão fica impedido de atuar na fase investigativa, respeitando os princípios da imparcialidade e independência.

 

3. DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E A ADPF 347

 

O sistema prisional brasileiro, já há alguns anos, enfrenta sérios problemas como a superlotação, a não observância aos direitos mínimos do preso, a ociosidade, condições insalubres, dentre outros problemas. Ou seja, embora a Lei de Execução Penal tenha como norte o princípio da dignidade da pessoa humana e a finalidade de ressocialização do agente infrator, a realidade que se vivencia é bem diferente.

Os estabelecimentos prisionais superlotados acabam acarretando diversos problemas, já que acirram as confusões, a violência, as rebeliões e fugas, bem como os ataques aos administradores e responsáveis pela segurança e manutenção da unidade prisional.

Segundo Lourenço e Hecktheuer (2020), a cultura do encarceramento vem contribuindo sobremaneira para o aumento do número de presos e agravando a situação já caótica do cárcere, mormente a superlotação que, segundo a doutrina majoritária, é o principal problema do cárcere.

Portanto, a legislação brasileira se encontra em consonância com o que preconizam as Regras Mínimas supracitadas, quando prevê celas de no mínimo 6 m2. Não obstante, a previsão legal não se concretiza, pois ainda que o espaço físico seja respeitado, o número de presos é superior ao que as unidades prisionais podem comportar.

As normas de Direito Internacional, em especial a Convenção Americana de Direitos Humanos, também versa sobre a integridade do preso, ao dispor, em seu art. 5º que “toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano” (OEA, 1969).

De igual forma, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas, ratificado pelo Brasil por força do Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, dispõe que ninguém será submetido à tortura nem a pena ou a tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes, além de prever que toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana (BRASIL, 1992).

Ademais, a própria Declaração Universal dos Diretos Humanos estabelece que ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Ainda no afã de assegurar os mínimos direitos ao apenado, já que a pena não pode atingir direitos outros senão aqueles expressamente consignados na sentença condenatória, a Constituição Federal também veda a tortura e o tratamento desumano ou degradante (inciso III, do art. 5º), de modo a resguardar a integridade física e moral dos condenados e também dos presos provisórios, como preconiza o art. 40 da Lei de Execução Penal, que precisa ser interpretado em conjunto com o já mencionado art. 41 da mesma lei (BRASIL, 1984).

Não obstante, o preconizado é bem diferente daquilo que se vivencia, como dito alhures. Por fim, a verdade é que a lógica do aprisionamento não tem levado a uma boa solução, a um bom resultado para o nosso País. Diante disso, o combate à cultura do encarceramento é urgente.

Portanto, falar em estado de coisa inconstitucional no sistema prisional é reconhecer que as normas mínimas não são observadas e que a falência do sistema configura violação aos direitos humanos e aos direitos fundamentais dos presos.

A questão é tão grave que o Supremo Tribunal Federal já declarou o “estado de coisa inconstitucional”, através do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, na qual deixou clara a atual situação do sistema prisional como um todo e que todos os poderes do Estado, executivo, legislativo e judiciário, possuem parcela de culpa para com este cenário. Não se pode somente falar dos efeitos da prisão enquanto recolhida a pessoa se encontra; vai além disso, esses efeitos tornam-se perenes e aquela mesma sociedade que clama por justiça instantânea, estigmatiza de forma cruel o egresso.

Não se trata de um caso isolado, pois outras discussões envolvendo a questão prisional também foram apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo do Recurso Extraordinário 641.320, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em que se discute o cumprimento da pena em regime penal menos gravoso pelo preso, em razão da falta de vagas no regime adequado; outro Recurso Extraordinário, da relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que discute a legitimidade do Poder Judiciário determinar que o Estado construa presídios; a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5170, sob a relatoria da Ministro Rosa Weber, em que se requer que a Suprema Corte reconheça a possibilidade de indenização por danos morais aos presos sob condições desumanas ou degradantes e fixe parâmetros para a indenizabilidade desses danos, citadas inclusive no julgamento do Recurso Extraordinário nº 580.252/MS (BRASIL, 2017).

Anote-se, ainda, que a Corte já se manifestou acerca do estado de coisas inconstitucional em virtude dos problemas do cárcere brasileiro. Em maio de 2015 o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 347), com pedido de concessão de medida cautelar, objetivando o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, e em consequência disso, fosse determinada a adoção de providências para sanar as gravíssimas lesões a preceitos fundamentais da Constituição praticadas pelo Poder Público no tratamento da questão prisional no país (BRASIL, 2017).

Em 9 de setembro de 2015 o Supremo Tribunal Federal analisou a medida cautelar pleiteada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. O relator, Ministro Marco Aurélio, destacou a violação sistemática e contínua de direitos fundamentais dos presos, e que a situação caótica dos presídios ocorre em todas as unidades da Federação, “devendo ser reconhecida a inequívoca falência do sistema prisional brasileiro” e ainda que tal situação implica no aumento da criminalidade e da insegurança social (BRASIL, 2017).

Com efeito, o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, do Estado de Coisas Inconstitucional e a determinação de medidas para a sua superação, ainda que em sede foi um grande passo no que diz respeito à responsabilização do Estado brasileiro pela omissão no sistema prisional, principalmente no que diz respeito à superlotação carcerária.

Não há dúvidas de que o Judiciário brasileiro reconhece o problema e a obrigação do Estado de atuar para saná-los. E Santiago e Pessoa (2021) vão além, justificando inclusive a intervenção de organismos internacionais para fazer valer os direitos humanos dos presos, hoje violados pelo sistema prisional brasileiro.

Resta claro, portanto, que o sistema prisional brasileiro não vem atendendo ao seu fim declarado na legislação, que é assegurar a ressocialização do apenado, pois tal fim clama sobretudo que os direitos mínimos sejam resguardados. Porém, o preso vem perdendo muito mais que sua liberdade quando é recolhido aos estabelecimentos prisionais, e tem seus direitos humanos, como a vida com dignidade, o direito à saúde, dentre outros, afrontados.

 

 

4. O PROBLEMAS DO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: BREVES CONSIDERAÇÕES

 

            Como apontado no tópico anterior o sistema prisional brasileiro apresenta inúmeros problemas que configuram violação aos direitos fundamentais, ou seja, aqueles consagrados na Carta Política, e também à normativas de Direito Internacional, dentre elas o Pacto de San José da Costa Rica. Nesse cenário é que várias denúncias já chegaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E sem a pretensão de se esgotar a questão, passa-se a se abordar, nessa seção, algumas situações debatidas.

            Relatório intitulado “Situação dos Direitos Humanos no Brasil”, divulgado em fevereiro de 2021 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, aponta que a taxa de aprisionamento cresceu consideravelmente entre os anos de 2000 e 2017, sendo o crescimento maior entre homens negros e jovens e mulheres. A população carcerária feminina, por exemplo, entre 2006 e 2019, subiu 116,27% (OEA, 2021a).

            O mesmo estudo relata que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tomou ciência que em abril 2018, em tentativa de fuga maciça no Centro Prisional de Recuperação do Pará, unidade que pertence ao Complexo Penitenciário de Santa Izabel, 21 pessoas perderam a vida, fato este que se repetiu dias depois na unidade prisional de Aparecida de Goiânia, no Estado de Goiás, quando uma fuga resultou em pelo menos 9 pessoas mortas (OEA, 2021a).

            Outro problema relatado pela Comissão é quanto ao uso excessivo da força e maus-tratos nos estabelecimentos prisionais dos Estados de São Paulo e Ri Grande do Norte, via de regra perpetrados por forças especiais. Segundo o Relatório inspeções vexatórias de mulheres, danos à pertences de presos, uso de balas de borracha, punições e espancamento são uma constante (OEA, 2021a).

            Também encontram-se manifestações sobre mortes violentas, desigualdade socioeconômica, violação a direitos humanos dos presos, discriminação às minorias, superlotação, dentre inúmeros outros problemas (OEA, 2021a).

            Ainda no ano de 2021 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu o Relatório nº 341, sobre pessoas privadas de liberdade em cadeias públicas de Minas Gerais. A denúncia foi levada à Comissão Pela Defensoria Pública, alegando violação ao direito à vida, à integridade física, à proteção judicial, dentre outros, na medida em que o Estado seria responsável pela violação à integridade pessoal das pessoas privadas de liberdade em vários estabelecimentos do Estado de retromencionado. E apontou, como principais problemas, superlotação, falta de condições físicas de aeração e iluminação, más condições de limpeza, infestação de animais, proliferação de doenças, inexistência ou insuficiência de cuidados médicos, condições desumanas de repouso, dentre outras tantas violações (OEA, 2021b).

            Anote-se que o mérito da questão ainda não foi apreciado, pois a Comissão determinou, em novembro de 2021, a notificação das partes. Portanto, é uma questão também pendente de análise pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA, 2021b).

            Antes disso, ainda em agosto de 2019, a Comissão deferiu medida liminar em relação à Penitenciária Evaristo de Moraes, situada em São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro. A denúncia chegou à Comissão informando que o número de falecimentos na unidade prisional gerava suspeitas, principalmente porque eram apontadas doenças desconhecidas como causa da morte. Na oportunidade a Comissão solicitou que o Brasil adotasse medidas necessárias para a proteção à vida, integridade pessoal a saúde dos presos, além de tomar medidas para reduzir a superlotação. E, ainda, prover condições adequadas de higiene, adotar planos de medidas emergenciais, e informar tais ações à Comissão (OEA, 2019).

            Outra questão discutida no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos é o grande número de presos provisórios. Logo, alertando para o problema da superlotação das unidades prisionais na América, inclusive o Brasil, que conta com mais de 40% de pessoas recolhidas à prisão sem condenação penal transitada em julgado, para a necessidade de reduzir o uso das prisões cautelares (OEA, 2017).

            Na oportunidade a Comissão ressaltou a relevância das audiências de custódia, bem como a ultima ratio da prisão (OEA, 2017).

            Verifica-se, portanto, que várias são as questões levadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e relativas à diversos estabelecimentos prisionais. Logo, os problemas do cárcere, no Brasil, não se limitam a uma ou outra unidade prisional, é endêmico e justifica o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, do estado de coisa inconstitucional. Passa-se, então, a averiguar o caso do Presídio Central de Porto Alegre, que em especial interessa ao presente estudo.

5. O PRESÍDIO CENTRAL DE PORTO ALEGRE E LIMINAR DEFERIDA PELA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

 

O Presídio Central de Porto Alegre é um estabelecimento prisional localizado na cidade de Porto Alegre, na capital do Estado do Rio Grande do Sul. Inaugurado em 1959 (a construção teve início em 1955). Teve a sua nomenclatura alterado pelo Decreto Estadual nº 53.297/2016, quando passou a se chamar “Cadeia Pública de Porto Alegre”. Contudo, nesse estudo mantem-se a utilização da denominação “Presídio Central de Porto Alegre”, por se constatar que a grande maioria dos estudos e documentos não se referem à “Cadeia”.

            Cumpre esclarecer que não se pretende, nesse ponto, esgotar a análise histórico-evolutiva do Presídio Central. O que se busca é contextualizar o cenário desolador que se instaurou, na última década, no referido estabelecimento prisional.

            Segundo Dornelles (2008), o Presídio Central de Porto Alegre, como qualquer outra instituição prisional, veio a lume como uma espécie de ‘solução mágica’ para os problemas de violência e criminalidade vivenciados na Região Metropolitana de Porto Alegre. Ainda, buscava conter a superlotação penitenciária que eclodiu junto ao processo de urbanização.

            Acrescenta o autor que o Presídio Central foi projetado para ter celas individuais, banheiros coletivos ao final de cada corredor, refeitórios, para atender, assim, seiscentos detentos, o que nunca ocorreu. Porém, em virtude do grande número de presos, o projeto inicial sofreu alterações e as celas que seriam individuais passaram a coletivas, com a junção de quatro unidades. Logo, em cada cela foram alocados oito presos e improvisado um banheiro em cada unidade, já que não era possível o acompanhamento dos presos, por funcionários do estabelecimento, aos banheiros situados no final dos corredores (DORNELLES, 2008).

            Com o passar dos tempos as celas não mais acomodavam apenas oito presos e novas mudanças estruturais foram realizadas, mormente a retirada de portas das celas e o consequente convívio dos presos em grandes galerias, separadas do pessoal da administração prisional pelo portão de segurança da galeria (DORNELLES, 2008).

            No ano de 2012, segundo relatório realizado pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), exatamente para subsidiar a denúncia que será analisada no próximo tópico deste estudo, o Presídio Central de Porto Alegre é um estabelecimento composto de pórtico de entrada, sala de visita, pavilhão administrativo, oficina de serralheria, gráfica, ambulatório, cantina e refeitório, almoxarifado, capela, setor de segurança, corredor, alojamento da brigada e, à época, dez pavilhões (A J), com nove pátios internos, totalizando 26 mil metros quadrados (RIO GRANDE DO SUL, 2013).

Durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário brasileiro, a Câmara dos Deputados classificou a unidade prisional como a pior do país, sendo que o documento apresentado relatava “defasagem estrutural, falta de saneamento, além do desmando no interior das galerias e a ‘institucionalização de uma perversa relação de comprometimento entre os detentos’” (CARRERA, 2013), fato este que culminou na primeira denúncia do Presídio Central à Comissão Interamericana.

A primeira denúncia realizada junto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em relação ao presídio Central de Porto Alegre em virtude da superlotação e da precariedade das instalações ocorreu em 2013. Segundo Carrera (2013), a decisão partiu de movimentos de direitos humanos que decidiram levar ao conhecimento da Organização dos Estados Americanos a grave situação do estabelecimento prisional:

A denúncia, apresentada por oito entidades que compõem o Fórum da Questão Penitenciária, revela que o presídio enfrenta superlotação da população carcerária e precariedade das instalações, entre outros problemas. Segundo Pio Giovani Dresch, presidente da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), uma das entidades que participam do fórum, a situação se arrasta desde 1995.

            Problema destacado, de plano, pelos denunciantes em 2012, foi a superlotação carcerária evidenciada em todos os pavilhões do Presídio Central de Porto Alegre. Com capacidade para 2.069 presos, abrigava 4.601 (CARRERA, 2013), ou seja, mais de 100% de sua capacidade.

            A denúncia encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA foi assinada pela Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS); Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (AMPRS); Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (ADPERGS); Instituto Brasileiro de Avalições e Perícias de Engenharia (IBAPE); Conselho da Comunidade para Assistência aos Apenados das Casas Prisionais Pertencentes às Jurisdições da Vara de Execuções Criminais e Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas de Porto Alegre; Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (CREMERS); Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC); e, ainda, Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero (RIO GRANDE DO SUL, 2013).

            Os denunciantes, de plano, afirmaram à OEA que o Presídio Central de Porto Alegre é o pior presídio do Brasil, apresentando números alarmantes quanto à superlotação, sem ignorar a grande rotatividade de presos, pois apenas no ano de 2011, segundo o relatório, 24.382 presos passaram pelo estabelecimento. Logo, ressaltaram que o grau de risco em relação às estruturas de concreto armado era crítico, de impacto irrecuperável, passível de causar danos à saúde e à segurança das pessoas e ao meio ambiente (RIO GRANDE DO SUL, 2013).

Ainda, as estruturas hidráulicas e sanitárias evidencia o comprometimento de todo o estabelecimento prisional, pois não havia fluxo de abastecimento de água, inexistia rede de esgoto na cozinha e nos banheiros das celas e galerias, dentre inúmeros outros problemas que também podiam ser sentidos na rede elétrica, que tornava claro o risco de incêndio no local. E as assistências que deveriam ser asseguradas aos presos, mormente a assistência à saúde, foi alvo da denúncia, principalmente pelo grande número de presos portadores de doenças infectocontagiosas como a broncopneumonia, a pneumonia e a tuberculose, sendo grande o número de mortes por doenças que, fora do estabelecimento, provavelmente não seriam fatais (RIO GRANDE DO SUL, 2013).

Outro grave problema já naquele ano era a perda de controle interno e o domínio do Presídio Central pelas facções criminosas, o que contribui, segundo o relatório, para o tráfico de drogas, armas e munições no estabelecimento prisional. Vale destacar que o Presídio Central de Porto Alegre já era alvo de interdições judiciais que vedavam, por exemplo, a entrada de presos provisórios, o que não vinha sendo respeito pelo Estado, chegando ao ponto do estabelecimento prisional a funcionar com o dobro da capacidade (CARRERA, 2013).

            Assim, no final do ano de 2013 a OEA exigiu que o governo brasileiro envidasse esforços para solucionar as condições precárias de funcionamento da maior penitenciária do Estado do Rio Grande do Sul, que à época contava, oficialmente, com pelo menos dois mil apenados (ILHA, 2014).

            Sobre a Medida Cautelar deferida pela OEA em dezembro de 2013, após ouvir a União, o Conselho Nacional de Justiça sintetiza:

A Medida Cautelar da comissão da OEA solicita ao Estado brasileiro que adote as providências necessárias para salvaguardar a vida e a integridade dos internos; assegure condições de higiene e tratamentos médicos adequados aos detentos; implemente medidas para recuperar o controle de segurança em todas as áreas do PCPA, com respeito a padrões internacionais de direitos humanos, “garantindo que sejam os agentes das forças de segurança do Estado os encarregados das funções de segurança interna e assegurando que não sejam conferidas funções disciplinares, de controle ou de segurança aos internos” (BRASIL, 2014).

A medida cautelar deferida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos também determinou a “elaboração de um plano de contingência contra incêndios, com a respectiva recuperação de extintores e de mangueiras de combate ao fogo, além de equipamentos de saúde e higiene para atender aos presos” (ILHA, 2014), além da redução substancial da lotação no interior da prisão (BRASIL, 2014).

            Não obstante, no ano de 2014 novamente ganhou evidência nos meios de comunicação o descumprimento, pelo Presídio Central, das determinações da OEA, decorrentes da denúncia perpetrada no ano de 2013, como leciona Ilha (2014) a Secretaria Nacional de Direitos Humanos requereu, inicialmente, 25 dias para sanar os problemas, e o governo do Estado do Rio Grande do Sul se comprometeu a solucionar parte dos problemas. Porém, nada foi feito, culminando em nova denúncia em 2017, quando o Presídio Central contava com 4.800 presos, número muito superior à sua capacidade, que era de 1.905 (SUPERLOTADA…, 2017).

            Segundo matéria divulgada pelo site G1, a AJURIS já havia realizado vistoria no ano de 2015 e constatou que a situação se agravou consideravelmente mesmo após as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pois fora mantida a mesma estrutura física, apesar do considerável aumento da população carcerária, aumentando também as condições subumanas existentes no estabelecimento prisional (SUPERLOTADA …, 2017).

            Em meio a esse cenário a Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (ADPERGS), a Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (AMPRS), a Clínica de Direitos Humanos da Uniritter, o Conselho da Comunidade para Assistência aos Apenados das Casas Prisionais Pertencentes às Jurisdições da Vara de Execuções Criminais e Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas de Porto Alegre, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio Grande do Sul (CREA-RS), o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul
(CREMERS), o Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia (IBAPE-RS), o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC-RS), o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC-RS), a Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul (OAB/RS) e a Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de forma conjunta, apresentaram nova denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E o caso recebeu o número 13.353 (Medida Cautelar 8-13), tendo como referência as pessoas privadas de liberdade no Presídio Central de Porto Alegre.

            Em novembro de 2017, atendendo à notificação encaminhada aos denunciantes, foram apresentadas observações adicionais, esclarecendo eventuais dúvidas da Comissão (RIO GRANDE DO SUL, 2017). E, para apresentar os esclarecimentos, foi realizada visita in loco em outubro de 2018, contando com a presença de representantes do Fórum da Questão Penitenciária, signatários da representação e elaborados documentos para subsidiar a denúncia.

Foram também solicitados e colhidos, junto à administração do estabelecimento prisional, dados sobre a evolução da população carcerária a contar de 2013, esclarecendo, ainda, quantos presos estavam ligados à atividades laborais, quantas visitas eram realizadas, se foram apreendidas armas de fogo ou instrumentos capazes de lesionar a integridade física, dentre outras questões (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

Foi obtida, ainda, autorização para uso de imagem do documentário denominado “Central – O poder das facções no maior presídio do Brasil”, sendo encaminhada à Comissão cópia em DVD do documentário à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, bem como laudo pericial realizado pela IBAPE/RS, que concluiu pelo grau de risco crítico do prédio, situação que agravava os riscos de segurança e à saúde, “sendo recomendada a recuperação imediata da estrutura de concreto” (RIO GRANDE DO SUL, 2017). E os problemas se projetavam para a alvenaria, revestimento, instalações elétricas e hidráulicas, o que, somado à precariedade da coleta de esgoto, por exemplo, levou à conclusão de que o local não atende aos requisitos mínimos para receber qualquer preso.

            O IBAPE destaca que a situação encontrada em outubro de 2017, se comparada à evidenciada em 20 de dezembro de 2013, era assustadora, e demostrava que a “habitualidade da edificação sofreu uma redução de área com a demolição do pavilhão C e aumento da população carcerária, permanecendo o cenário da denúncia constante do Termo de Representação na […] OEA” no ano de 2013 (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

O problema era de tamanha magnitude e se evidenciava pelo simples fato de que o Presídio Central teve a sua capacidade/número de vagas reduzidas de 1.984, no ano de 2013, para 1.824, no ano de 2017. Contudo, a população carcerária aumentou de 4.591 presos, para 4.705, o que corresponde a um excedente de 157,95%, ou seja, há 2.881 presos em excesso em face das vagas existentes (RIO GRANDE DO SUL, 2017). Logo, a diminuição de vagas pela demolição do Pavilhão “C” contribuiu para o agravamento da superlotação.

Os denunciantes ressaltaram ainda outro grave problema, que é a perda do controle interno e o domínio das facções no interior do estabelecimento prisional, criando normas próprias nos pavilhões e demonstrando a incapacidade do Estado gerir o estabelecimento. E constatou que todas as recomendações feitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2013, não foram atendidas (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

A denúncia de 2017 apontou ainda outros problemas, como o aumento no número de visitantes; o pagamento, pelos presos, para não serem agredidos no interior do presídio; as revistas vexatórias a que se submetiam os visitantes em virtude da inexistência de scanner corporal, por exemplo, para revista; a presença constante de crianças com menos de 12 anos de idade nos pavilhões em dias de visita; a inexistência de qualquer medida de combate e controle a incêndios; a falta de labor para a quase totalidade dos presos, já que aqueles que laboravam o fazia basicamente nas atividades internas do estabelecimento prisional; a inexistência de alas para estudo, dentre outros.

Por conseguinte, os denunciantes concluíram que a situação levada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2017 era ainda pior que a apresentada em 2013, e que as recomendações da Organização dos Estados Americanos não surgiu qualquer efeito, sendo o Presídio Central de Porto Alegre incapaz de ressocializar e reinserir o preso em sociedade.

Ainda, mister registrar que pesquisa junto ao sítio eletrônico da Organização dos Estados Americanos, Comissão de Direitos Humanos, não retornou reposta quanto à julgamento de Medida Cautelar ou questão de mérito na denúncia realizada pela AJURIS e outros em 2017, não sendo possível apresentar, por conseguinte, informações sobre o julgamento da questão. 

Infelizmente, embora o Presídio Central de Porto Alegre tenha sido declarado o “pior presídio do Brasil”, esse não é um problema isolado. Outros estabelecimentos prisionais violam sobremaneira os direitos humanos, o que não é recente, culminando em tragédias como a ocorrida no Carandiru, episódio público e notório, ou nas mortes relatadas no tópico anterior, no Piauí. Logo, justifica-se a declaração, pelo Supremo Tribunal Federal, do estado de coisa inconstitucional.

Ademais, a Constituição Federal de 1988, em consonância com as normas de Direito Internacional, preconiza em seu art. 5º que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (BRASIL, 1988). Contudo, as informações constantes do Relatório da AJURIS, aquelas extraídas de documentos diversos disponíveis no sitio eletrônico da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ou mesmo nas decisões do Supremo Tribunal Federal, evidencia as péssimas condições oferecidas aos presos nos estabelecimentos prisionais do país.

De igual forma, a Constituição, em seu art. 5º, inciso XLIX, assegura o respeito à integridade física e moral; e, no inciso XLIII, diz que a pena deve ser cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (BRASIL, 1988). Ainda como exemplo, a Lei de Execução Penal determina o tamanho de cada cela, de modo assegurar o respeito à dignidade humana e, assim, proporcionar a ressocialização do agente infrator (BRASIL, 1984).

A Convenção Americana sobre os Direitos Humanos também dispõe que toda pessoa tem direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral, vedando as penas de tratos cruéis, desumanos e degradantes (OEA, 1969). Mas, no Presídio Central de Porto Alegre, isso não ocorre.

Também dispõe o art. 40 e 41, inciso VII e XII, da Lei de Execução Penal, que são direitos dos presos o respeito, pelas autoridades, à integridade física e moral; e a assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa, bem como a igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena. Basta acompanhar os relatos dos denunciantes para ver que não há que se falar em respeito à integridade física e moral em um lugar, por exemplo, que armazena em tonéis comida em decomposição próximo aos alimentos que são servidos diuturnamente aos presos (BRASIL, 1984).

Portanto, espera-se que a intervenção dos organismos internacionais de proteção aos direitos humanos contribuam para sanar os problemas vivenciados no Presídio Central de Porto Alegre, impondo ao Estado Brasileiro efetivas sanções pelo descumprimento aos direitos mínimos dos apenados. E, ainda, que as medidas se projetem para outros estabelecimentos prisionais, já que o problema é geral e compromete todo o sistema prisional brasileiro.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Buscou-se compreender, ao longo do presente estudo, os problemas que envolvem o Presídio Central de Porto Alegre, mormente quanto às denúncias realizadas pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS) e outros, sendo a primeira delas em 2013, que culminou na concessão de medida liminar, e, a segunda, em 2017, ainda sem julgamento.

            Não há dúvidas quanto à importância dos direitos humanos e a sua evolução, que levou à edição de diversos diplomas de Direito Internacional e estabelecimento de sistemas de proteção a estes direitos, como a Organização dos Estados Americanos.

            Viu-se que a história do Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos teve como marco inicial a proclamação da Carta da Organização dos Estados Americanos (Carta de Bogotá) de 1948, a qual foi acatada na 9ª Conferência Interamericana, na mesma oportunidade em que também foi celebrada a Declaração Americana dos Direitos e deveres do homem, que por sua vez, consolidou-se como pilar normativo de proteção no sistema interamericano, uma vez que anterior à finalização da Convenção Americana (1969). É importante assinalar que a Declaração Americana dos Direitos e deveres do homem, ainda continua servindo como instrumento regional nessa matéria, especialmente para os Estados que não fazem parte da Convenção Americana.

            Foi posteriormente à adoção desses dois instrumentos – a Declaração Americana de Direitos do Homem e Convenção Americana de Direitos Humanos – que se promoveu, gradualmente, um processo de amadurecimento acerca dos mecanismos de amparo dos direitos humanos na esfera do sistema interamericano. O passo inicial deu-se por meio da criação de um órgão especializado de promoção e proteção dos direitos humanos no âmbito da Organização dos Estados Americanos, qual seja, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Inicialmente, a Comissão deveria funcionar provisoriamente até a instituição de uma Convenção Interamericana de Direitos Humanos, fato que se consumou em São José da Costa Rica, em 1969.

            Restou clara a competência da Comissão Interamericana, sobretudo no que tange a proteção dos direitos humanos assegurados pela Convenção supracitada, bem como a todos os Estados-partes da Organização dos Estados Americanos, o que resta consagrado com a possibilidade de qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidades não governamentais legalmente reconhecidas em um ou mais membros da Organização, de apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convecção por um Estado parte.

            Nesse contexto, como visto, é que a situação do Presídio Central de Porto Alegre ganha evidência, pois é a clara manifestação da faculdade de se levar à Comissão denúncia sobre violação de direitos humanos.

            O referido estabelecimento prisional foi inaugurado em 1959 e, em seu projeto, atendia às normas para a ressocialização do apenado, ou seja, observava os direitos humanos. Contudo, com o passar dos tempos, e principalmente pelo crescimento da população carcerária, a realidade foi sendo alterada.

            A situação no Presídio Central de Porto Alegre é tão grave que no ano de 2013 foi levada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a primeira denúncia à violação destes no âmbito do estabelecimento prisional. Como viu-se, o relatório apresentado à Comissão demonstra as condições insalubres do estabelecimento; a inobservância de direitos fundamentais, como o direito ao trabalho e à educação; a alimentação precária disponibilizada aos presos; as falta de estrutura física, a ponto de esgoto correr a céu aberto pelos pátios, dentre tantos outros problemas.

            Ainda no ano de 2013 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos deferiu Medida Cautelar, determinando que fossem adotadas estratégias para que não houvesse violação aos direitos humanos dos presos, a exemplo da não admissão de novos detentos, da alocação de presos, etc. Contudo, o Estado brasileiro não cumpriu com as determinações.

            Tal fato fez com que novas denúncias surgissem no âmbito interno, por meios de comunicação e organismos de tutela dos direitos humanos, sendo novamente levado ao conhecimento da Comissão, pela AJURIS e outros, os problemas enfrentados no Presídio, isso no ano de 2017.

            Em relação a esta segunda denúncia não se encontrou, no sítio eletrônico da Organização dos Estados Americanos, uma resposta quanto à eventual concessão de nova medida cautelar ou mesmo julgamento (ou previsão de julgamento) de mérito. Logo, fica desde já a sugestão para futuros estudos nesse sentido.

            Porém, o que se percebe de todo o exposto, é que a violação aos direitos humanos dos presos, no Presídio Central de Porto Alegre, é clara. Condições subumanas de cumprimento de pena, em desrespeito à integridade física e moral, refletem na dignidade da pessoa humana e comprometem a reinserção em sociedade e a ressocialização do agente infrator.

            Acreditar que um indivíduo pode se ressocializar em um ambiente onde se encontram insetos na alimentação dos presos, onde esta é insuficiente e comida em decomposição é armazenada no mesmo espaço em que se preparam alimentos é utopia.

            Não bastasse isso, a superlotação que impera, o domínio das facções, etc., esgoto corre a céu aberto nas celas e pátios, com improvisos para tentar amenizar os problemas.

            Destarte, espera-se que a Organização dos Estados Americanos possa se pronunciar e, assim, contribuir para o respeito aos direitos humanos dos presos não apenas no Presídio Central de Porto Alegre, mas que a decisão sirva de paradigma para outros estabelecimentos que enfrentam semelhantes situações, levando o Estado brasileiro a agir, de forma eficaz, para salvaguardar os direitos dos detentos, o que hoje não ocorre.

 

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[1] Advogado. Mestrando em Direito pela Ambra University.

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