Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente
RIDCA - Edición Nº2 - Derecho Internacional
Fernando Tarapow - Priscila Caneparo. Directores
20 de diciembre de 2022
A liberdade de expressão no estado democrático de direito frente ao projeto de Lei Nº 2630/2020 (Lei das fake news)
La libertad de expresión en el estado democrático de derecho frente al proyecto de Ley n° 2630/2020 (Ley de noticias falsas)
Autor. Antonio Soares De Souza Melo. Brasil
Antonio Soares De Souza Melo[1]
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo desenvolver uma análise a respeito do controle promovido pelo Estado brasileiro sobre o direito de liberdade de expressão, ante a proposta de regulamentação do conteúdo informativo veiculado nos diversos meios de comunicação por meio do projeto de lei nº 2630/2020, intitulado lei das Fake News, dentro das premissas do estado democrático de direito à luz das garantias fundamentais asseguradas pela Constituição Federal. O referido estudo mostra-se relevante diante da alta discussão no meio social sobre a regulamentação da transmissão de informações e pelas demandas atualmente levadas ao judiciário acerca do tema em voga. O trabalho foi desenvolvido pelo método hipotético- dedutivo e os recursos utilizados foram a legislação, a doutrina e a jurisprudência relacionados à temática central. Esta produção tem início com apontamentos sobre democracia, estado democrático de direito e o conceito jurídico de liberdade, perpassando pelas garantias fundamentais asseguradas pela Constituição Federal em relação à liberdade de expressão e chegando, por fim, a uma verificação da adequação do texto do sobredito projeto de lei ao que preconiza a Carta Magna a fim de concluir sobre a sua constitucionalidade. O tópico um conclui sobre indissociabilidade entre liberdade, igualdade e democracia, o que deve ser assegurado pelo Estado tanto para maiorias quanto minorias. O tópico dois conclui pela generosidade da Constituição Federal em relação à liberdade e expressão, mas que esta também assegura o dever de guarda das demais garantias constitucionais, especialmente a dignidade da pessoa humana. Por fim, o tópico três analisa o texto do projeto de lei, concluindo pela necessidade de melhor observação do texto em seu artigo 9º, II, que determina a limitação de número de membros por grupo, o que fere o direito constitucional à livre associação e o artigo 13, § 6º, que precisa trazer maiores esclarecimentos sobre o uso de dados desagregados, chegando assim a uma constitucionalidade parcial.
Palavras-chave: Democracia. Liberdade de expressão. Fake News.
Abstract:
The present article has the aims to develop an analysis about the control promoted by Brazilian State by the freedom of speech up against the proposal for informative content regulation conveyed in the several means of communication through bill nº 2630/2020, entitled Fake News law, inserted in the premises of the democratic state of law in light of the fundamental guarantees according by the Federal Constitution. The referred study is relevant considering your discussion in the social environment about the informative content regulation and the demands currently had brought to the judiciary because the theme evidence. The work was developed by the hypothetical-deductive method and the resources used were legislation, doctrine and jurisprudence related with the central theme. This paper begins with notes on democracy, the democratic state of law and the legal concept of freedom, going through the fundamental guarantees ensured by the Federal Constitution related to freedom of speech and finally to verify the adequacy of the bill text to the Constitution in order to conclude to verify your constitutionality. The topic one concludes about the inseparability of freedom, equality and democracy, which must be ensured by the State for both majorities and minorities. Topic two concludes by the generosity of the Federal Constitution about the freedom of expression, but that this also ensures the duty to guard other constitutional guarantees, especially the dignity of the human person. Finally, topic three analyzes the text of the bill, where is necessary to observe better the text of article 9, II, which determines the limitation of the number of members per group, which violates the constitutional right to free association and article 13, § 6, which needs to provide further clarification on the use of disaggregated data, thus reaching partial constitutionality.
Key words: Democracy. Freedom of Speech. Fake News.
1. INTRODUÇÃO
Os diversos meios de comunicação têm papel pertinente no sistema democrático brasileiro, tanto que a Constituição Federal em vigência traz no seu texto diversas previsões e assertivas que circunscrevem todo o suporte de difusão de informação promovido no território nacional.
Não cabe a mídia em geral – além da mídia tradicional, também a chamada mídia alternativa, que a cada dia ganha destaque e visibilidade, principalmente por meio da utilização da internet – apenas o dever de transmitir conteúdo de caráter educativo, artístico e cultural como preceitua a Carta Magna, mas também de denunciar e fiscalizar ações que atingem todas as esferas sociais, quer sejam de cunho político, social, jurídico, econômico ou administrativo, com o ímpeto de permitir à sociedade o acesso ao conhecimento das atividades exercidas por cada um dos Poderes que a regem (executivo, legislativo e judiciário), constituindo assim, um corpo social participativo, forte e conhecedor de seus direitos e deveres, características estas essenciais ao estado democrático de direito.
A liberdade de expressão é um direito subjetivo com muita amplitude e que a própria Constituição veta a limitação excessiva, ao proibir a censura. Porém, é inconteste que uma garantia fundamental não deve, deliberadamente, se sobrepor a outra. Neste entendimento é que se pode afirmar que a liberdade de expressão precisa respeitar a dignidade da pessoa humana, entre outros direitos expressamente assegurados.
Pensando nas controvérsias a respeito do direito de manifestar-se e de seus limites diante dos demais indivíduos da sociedade brasileira, foi que o Poder Legislativo, depois de discussões diversas levadas ao Poder Judiciário, deu início ao projeto de lei nº 2630/2020, o que nos leva ao seguinte questionamento: Até onde a constituição brasileira permite o controle das informações divulgadas pelos diferentes meios de comunicação, sem desrespeitar o estado democrático de direito que assegura garantias individuais e coletivas de manifestação de opinião?
Assim, o presente trabalho pretende analisar a constitucionalidade do projeto de lei nº 2630/2020 diante das garantias fundamentais expressas na Constituição Federal, respeitando assim, o estado democrático de direito, sem ferir o direito à liberdade de expressão. Para tanto, esta produção pretende analisar tal tentativa de controle e fiscalização do Estado por meio do referido projeto de lei, intitulado lei das Fake News, iniciando com breves exposições acerca do que a doutrina trata sobre democracia e estado democrático de direito e sua relação com o conceito jurídico de liberdade de expressão, seguindo por uma análise das garantias fundamentais asseguradas pela Constituição Federal, especialmente as que se relacionam com tal liberdade e chegando, por fim, a uma exposição sobre a promoção de notícias falsas e uma verificação da adequação do texto da lei das Fake News ao que preconiza a Carta Magna a fim de concluir pela presença de constitucionalidade no referido dispositivo legal.
2. DEMOCRACIA, ESTADO DEMOCRÁTICO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO BRASIL
Para tratar de liberdade de expressão dentro do texto constitucional e seus desdobramentos na sociedade, especialmente em relação à legislação e à jurisprudência brasileira atual, é indispensável que sejam feitos alguns apontamentos acerca da democracia, seu conceito, sua abrangência e as permissões que o célebre estado democrático de direito concede em relação à liberdade de expressão como um de seus fundamentos.
2.1 Princípios Democráticos
O percurso da democracia na história foi um processo longo, onde o ideal democrático precisou adaptar-se às sociedades que o adotavam. A palavra democracia (DEMOCRACIA…, 1993, v. 7, p. 3200) tem origem grega demokratía, onde o prefixo demos significa povo e o sufixo krátia está ligado aos termos krátos, que significa força e a kratéins, que significa governar. A palavra foi trazida para o latim democratia, no século XIII pelo filósofo Aristóteles e para o português em meados do século XVIII.
Tradicionalmente, a democracia revela um modelo de governo onde o povo, enquanto soberano, exerce o poder diretamente ou por meio de representantes por ele legitimados. Na forma moderna, democracia pode ser definida como a expressão da vontade do povo, estabelecida de forma representativa e determinada por lei (FERREIRA,1989, p.61, apud MELO; CHIAB,2019, p.193). Resta claro, portanto, a indissociabilidade entre a democracia e a posição libertária e igualitária dos seus participantes.
É pacificado entre os estudiosos que a democracia possui duas características fundamentais, ou princípios: A liberdade e a igualdade. Há quem considere o conceito de maioria como um terceiro princípio basilar da democracia (é o caso de Kildare Carvalho), mas há quem o veja tão somente como uma espécie de técnica de governo ou, como Aristóteles aduz em sua renomada obra A Política (2008, p.45), que define a chamada maioria numérica como uma consequência do princípio da liberdade.
Tem-se, assim, que o governo democrático termina por ser o governo da maioria. Isso não significa que está dispensada a obrigação deste em relação às minorias, como informa Melo e Chiab (2019, p.191):
Torna-se necessário um equilíbrio entre a liberdade e a igualdade objetivando eliminar as diferenças gritantes na sociedade e esta meta só é conseguida no regime político da democracia onde a maioria domine, respeitando por outro lado a minoria.
Malgrado a prevalência da opinião da maioria, o debate de ideias é indispensável para o aprofundamento das questões pertinentes à sociedade, o que evidentemente, contribui para o processo democrático.
Importa observar, ainda, que se a democracia existe de fato, deve haver alguns elementos básicos que, como preconiza Robert A. Dahl, ( 1998 apud CARVALHO 2010, p.219) seriam: a liberdade para formação e integração por meio de organizações; liberdade de expressão; direito ao voto; acesso a cargos públicos; competição entre líderes políticos por meio de votação; fontes alternativas de informação; eleições livres e isentas; instituições que viabilizem a política do governo, legitimadas pelo voto ou outras manifestações da vontade popular.
Ao revés da concepção de Dahl acerca dos elementos caracterizadores da democracia, há quem a determine de forma mais simples. É o caso de Silva (2008, p.128) ao dizer que “A democracia não precisa de pressupostos especiais. Basta a existência de uma sociedade. Se seu governo emana do povo, é democracia; se não, não é”. Assim, uma sociedade sequer precisa declarar-se ou entender-se como democrática, bastando tão somente a participação ativa do povo.
2.2 Desenvolvimento Do Estado Ante A Essência Democrática
O progresso da humanidade aponta, desde os seus primórdios, para uma necessidade nata de vivência em grupo, até para a própria mantença da vida do indivíduo, que se juntava inicialmente em família, evoluindo para grupos sociais maiores e mais complexos. Acerca das organizações humanas, ressalta Morais (2016, p.2) que estas surgiram e se sucedem em círculos de crescimento cada vez mais integrados, sendo o Estado um resultado desta evolução gradual de poder, que não se confunde com as formas mais antigas de agrupamento.
Este enredado de relações entre o povo e o poder público – criado para fins organizacionais – vai se estruturando e dando a forma para o que hoje se chama de Estado. O saudoso Pontes de Miranda, citado por Alexandre de Morais, definiu Estado como «o conjunto de todas as relações entre os poderes públicos e os indivíduos, ou daqueles entre si». (MIRANDA,1946, p.39, apud MORAIS,2016, p.2) e que se a e relação entre eles deixar de existir, o Estado também irá desaparecer.
Com o desenvolvimento das relações sociais, também surgiram teorias de grandes estudiosos que buscavam explicar este fenômeno chamado Estado. É possível encontrar inúmeras teorias acerca do motivo propulsor da sua origem, baseadas em questões diversas, como:
[…]conservação das instituições (Stahl), à realização e aperfeiçoamento moral (Hegel), à realização e aperfeiçoamento moral (Hegel), à realização do direito (Locke, Kant), à criação e asseguração da felicidade (Cristiano Wolf e Banham), ou ainda, como aponta a teoria do materialismo histórico estatalista, para a realização da igualdade econômica. Kelsen, dentro do estrito formalismo, justifica o Estado como o «fim em si-mesmo.»(MORAIS, 2016, p.3)
No Brasil, com a mudança de um regime político ditatorial para um democrático, ainda que com algumas limitações, surge a participação ativa do povo nas decisões, em um processo de abertura de horizonte, com novos movimentos que levantaram avidamente a bandeira democrática. O país começa a dar sinais de um novo caminho que se consolida na elaboração da “constituição cidadã” de 1988, um conjunto de artigos capazes de expressar as
novas aspirações e interesses da população, que durante anos foi impedida e represada por sistemas de governo mais fechados.
Aprovada a nova constituição, as organizações sociais passam a ter visibilidade na representação de classes e na participação política de forma livre e atuante. Diante da nova realidade, com uma mídia livre e independente, tal participação é mais evidente e integrada no que tange ao conhecimento social dos fatos políticos, assim como os governantes também tomam maior conhecimento dos fatos e reivindicações da sociedade por melhorias estruturais.
Desta feita, conclui-se que não há que se falar em democracia sem que haja liberdade e igualdade que permitam ao povo daquela sociedade participar de forma ativa das atividades do poder público, especialmente por meio da eleição de seus representantes e que o estado democrático de direito, naturalmente, assegura a vontade da maioria, sem desenvincilhar-se da responsabilidade com as necessidades das minorias. Além mais, as garantias básicas do estado democrático devem compor as normas positivadas para que tenham efetividade e proteção pelo Estado, figura esta que tem o claro dever de dinamizar tais determinações legais para o seu povo.
3. LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
O texto constitucional brasileiro sofreu alteração valorativa no processo de desenvolvimento histórico do ordenamento jurídico. Barroso (2015), citando as concepções apresentadas pelo jurista espanhol Eduardo García de Enterría, evidencia as mudanças de referência ocorridas no século XX, quando se atribuiu à norma constitucional o status de norma jurídica, não estando mais limitada somente ao seu caráter político. Esta mudança ocorreu depois da segunda guerra mundial, quando emergiu o modelo constitucionalista norteamericano, que estabeleceu a supremacia da norma constitucional. Como principais consequências do enaltecimento da Constituição, vemos:
Desse reconhecimento de caráter jurídico às normas constitucionais resultam consequências especialmente relevantes, dentre as quais se pode destacar:
- A Constituição tem aplicabilidade direta e imediata às situações que contempla, inclusive e notadamente os referentes à proteção e promoção dos direitos fundamentais. Isso significa que as normas constitucionais passaram a ter um papel decisivo na postulação de direitos e na fundamentação de decisões judiciais;
- A Constituição funciona como parâmetro de validade de todas a s demais normas jurídicas do sistema, que não deverão ser aplicadas quando forem com cortes ou tribunais constitucionais que exercem o poder de declarar leis e atos normativos inconstitucionais;
- Os valores e fins previstos na Constituição devem orientar o intérprete e o aplicador do Direito no momento de determinar o sentido e o alcance de todas as normas jurídicas infraconstitucionais, pautando a argumentação jurídica a ser desenvolvida. (BARROSO, 2015, p.232)
Tem-se, assim, que a norma constitucional adquiriu valor superior às demais normas jurídicas em geral – à exceção das normas internacionais que a ela se equiparam – não deixando a sua posição política, mas agregando a sua condição paradigmática.
3.1 Liberdade De Expressão E Garantias Fundamentais
A Constituição Federal em vigência, promulgada no ano de 1988, trouxe em seu conteúdo normativo os chamados direitos fundamentais, dividindo-os em individuais, previstos no Art.5º, e sociais, previstos no Art. 6º da Carta Magna. Note-se que a principais considerações acerca da liberdade de expressão encontram-se elencadas no artigo que preconiza as garantias individuais e que antecedem as coletivas, o que já denota a relevância de tal direito, uma vez que não compete tão somente à coletividade, mas a cada indivíduo de maneira singular, junto com outros direitos inerentes à pessoa humana.
É importante compreender o que abrange o direito de liberdade de expressão disposto na Constituição Federal de 1988. Para Branco (2016, p.263), estão incluídas faculdades diversas, tais como a comunicação de pensamentos, de ideias, de informações e de expressões não verbais (comportamentais, musica, imagem, entre outros) e mesmo que haja variações no que tange à proteção dessas formas de expressão, todas têm amparo constitucional. Já Tavares (2009, p.594), apresenta o conceito trazido pela Suprema Corte americana no caso Cohen v. California, onde tem-se que a liberdade de expressão “(…)não denota apenas idéias de relativa precisão, explicações imparciais, mas também emoções inexprimíveis” (TAVARES,2009, p.594). Esta ideia advém do julgamento que inocentou Paul Robert Cohen pelo crime de perturbação a paz por usar uma jaqueta com a inscrição contra o alistamento obrigatório norteamericano nos corredores públicos de um tribunal.
Não se pode ignorar a relação da liberdade e desenvolvimento humano. É o que se constata em Branco (2016), ao falar da importância da liberdade de comunicar-se para o desenvolvimento do indivíduo em sua integralidade, conforme a seguir colacionado:
O ser humano se forma no contato com o seu semelhante, mostrando-se a liberdade de se comunicar como condição relevante para a própria higidez psicossocial da pessoa. O direito de se comunicar livremente conecta-se com a característica da sociabilidade, essencial ao ser humano. (BRANCO,2016, p.264)
A garantia da liberdade de expressão abarca toda e qualquer forma de “opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não” (BRANCO,2016, p.264). Ou seja, não é cabível nenhum tipo de acepção de qualidade da informação, visto que «diferenciar entre opiniões valiosas ou sem valor é uma contradição num Estado baseado na concepção de uma democracia livre e pluralista» (KARPEN,1988, p.93, apud BRANCO,2016, p.264), persistindo o dever de não colisão entre a liberdade de expressão e demais garantias fundamentais.
Este direito também não pode sofrer qualquer tipo de controle exacerbado a ponto de se configurar em censura, sendo assim notório o sistema de equilíbrio, visado pela Constituição em relação ao direito de comunicação e informação ante o limite de qualquer outro direito por ela resguardado, conforme assevera Schlink e Camazano:
O exercício dos direitos pode dar ensejo, muitas vezes, a uma série de conflitos com outros direitos, constitucionalmente protegidos. Daí fazer-se mister a definição do âmbito ou núcleo de proteção e, se for o caso, a fixação precisa das restrições ou das limitações a esses direitos (limitações ou restrições = Schranke oder Eingriff) ¹. A limitação dos direitos fundamentais é um tema central da dogmática dos direitos fundamentais muito provavelmente, do direito constitucional².(SCHLINK, 2005.p.1; CAMAZANO, 2005, p.1, apud MENDES, 2016, p.190)
Frise-se, portanto, que liberdade de expressão não deve ultrapassar, por exemplo, o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
No que tange especificamente à fonte jornalística, o texto constitucional é bastante claro em seu inciso XIV, ao salvaguardar o direito do jornalista de não quebrar o sigilo da sua fonte. Cumpre destacar também que o inciso XXXIII do Art. 5º da Lei Maior que garante a todos o direito de receber informações de órgãos públicos cujo interesse seja particular ou
coletivo, sob pena de responsabilidade, o que corrobora especialmente com o princípio da publicidade, elencado no art. 37 da Constituição onde se determina que, em regra, as atividades públicas devem ser propaladas a fim de garantir a sua eficiência, posto que se dirigem à população, bem como para controle das atividades administrativas, devendo tais informações ter caráter educativo ou de orientação social. Vale ressaltar que é permitido a prática de atividade sigilosa quando houver relevante interesse coletivo, garantia de segurança nacional e proteção da intimidade e honra.
Tamanha a importância dos meios de comunicação para o constituinte no intento de que a Constituição Federal de 1988 preservasse o cidadão nos mais diversos aspectos de sua existência que se reservou um capítulo inteiro da Carta Magna para o tema, a saber, o capítulo V, dos artigos 222 ao 224, o que evidencia a função social da imprensa.
A liberdade de informação é dita como plena, resguardadas as limitações trazidas pelo Art. 5º da Constituição. Em seu Art. 220, a Lei Maior assegura o direito a manifestação do pensamento, criação, expressão e informação, independente da forma, não devendo sofrer restrições, independentemente de seu processo ou veículo, ou seja, uma forma de comunicação estabelecida de maneira plena, onde «não é o Estado que deve estabelecer quais as opiniões que merecem ser tidas como válidas e aceitáveis; esta tarefa cabe, antes, ao público a que essas manifestações se dirigem” (BRANCO,2016, p.265), salvo quando houver ofensa quaisquer outras garantias.
3.2 Limitações Ao Direito De Liberdade De Expressão
Não é difícil perceber a amplitude do direito de liberdade de expressão – uma característica evidente das garantias constitucionais. Não obstante, de acordo com Mendes (2016, p.192), existem expressões no texto constitucional que limitam ou restringem direitos fundamentais, a saber, “nas hipóteses e “na forma que a lei estabelecer” (BRASIL,1988, art.5º, XVIII), “ salvo nas hipóteses previstas em lei” (BRASIL, 1988, art.5º, LVIII) ou ainda, termos que façam referência a um conceito jurídico indeterminado, submetendo tais direitos à reserva restritiva da lei.
Ao passo que a Constituição Federal garante o direito de exteriorização e liberdade de expressão, também veda o anonimato, assegurando assim, a responsabilização civil e criminal do manifestante, que não pode valer-se de um direito constitucional expresso para ferir as demais garantias individuais ou coletivas, previstas no corpo da própria Lei Maior ou em legislação infraconstitucional, o que já demonstra uma limitação ao direito de expressar-se.
Ademais, o inciso X traz outra clarividente limitação ao direito de liberdade de expressão, a garantia da inviolabilidade da intimidade, honra, vida privada e imagem, sob pena de condenação em dano moral e /ou material. Outra limitação importante apontada por Branco (2016, p.271) é em relação aos direitos da criança e do adolescente, quando puser em risco a educação democrática ou estimular a violência e exploração.
A liberdade de expressão também vai de encontro ao direito de resposta, que consta no inciso V do art.5º da CF, explicado pela lei nº 13.188/2015 em seu artigo 2º, como o direito do ofendido de se manifestar sobre matéria divulgada, publicada ou transmitida por meios de comunicação social de forma gratuita e proporcional ao agravo cometido, a fim de amenizar possíveis danos ocasionados.
Assim, conclui-se que a Constituição Federal de 1988 foi muito generosa em relação à liberdade de expressão, vetando de pronto a censura e impedindo com isso, que o Estado exerça controle excessivo sobre a liberdade de seu povo. Porém, diante das demais obrigações do texto da Carta Maior com outros direitos e garantias nela estipulados, a própria Constituição permite ao poder público, em determinada circunstancias, vetar, e até punir, os excessos para assegurar que a informação passada – independente do meio –se faça de forma
clara, consciente e segura, o que é absolutamente compatível com os princípios basilares da democracia e do estado democrático de direito, a saber, a liberdade e igualdade que são propulsores da dignidade da pessoa humana.
4. AS FAKE NEWS NO SISTEMA LEGISLATIVO BRASILEIRO
O termo Fake News é inglês e significa notícia falsa. É utilizado para denominar informações não verdadeiras disseminadas especialmente na internet, pelas redes sociais, quer seja de forma coletiva ou privada. A expressão popularizou-se em 2016, durante o período eleitoral norte-americano que acabou por eleger Donald Trump, que foi acusado de veicular notícias falsas de sua concorrente, Hillary Clinton, com o auxílio de empresa especializada em tráfego de internet. No Brasil, o termo consolidou-se durante as eleições de 2018 onde elegeuse Jair Messias Bolsonaro, candidato que fez da internet um forte de instrumento de sua propaganda política.
Na análise de Dias Tofolli (2020, n.p), o termo Fake News é inadequado para designar o problema de “uma notícia integral ou parcialmente inverídica apta a ludibriar o receptor, influenciando seu comportamento – com o fito de galgar uma vantagem específica e indevida”, afirmando ser mais oportuno a utilização da expressão notícia fraudulenta, pois a correta delimitação do objeto de embate efetiva a sua resolução. Já o Grupo de Peritos de Alto Nível sobre Notícias Falsas e Desinformação da Comissão Europeia, incentiva o uso do termo desinformação (TOFOLLI,2020, n.p.), apresentado em 2018 como parte de um relatório que intentava contribuir com o combate de disseminação de conteúdos falsos. Mas por hora, no Brasil. Permanece a utilização do termo Fake News.
4.1 A RESPONSABILIDADE SOCIAL NA VEICULAÇÃO DE INFORMAÇÕES
A alta velocidade de propagação de conteúdo pela internet é o caminho ideal para a disseminação de notícias falsas. Somando-se à facilidade de produção de conteúdo ao envio por listas de transmissões ou quaisquer outros meios automatizados, cria-se um verdadeiro tráfego de Fake News que pode trazer benefícios aos seus propagadores quando da aceitação e credibilidade dada à informação lançada. Ao passo que o bombardeio de conteúdo online facilita o acesso à informação, também aumenta o risco de acesso a conteúdo de origem duvidosa.
De acordo com uma pesquisa promovida pela Startup brasileira desenvolvedora de aplicativos para celulares Psafe (2018, on-line), que possui um laboratório especializado em crimes cibernéticos, 8,8 bilhões de brasileiros foram impactados por Fake News no primeiro semestre de 2018 e mais de 95% das notícias falsas foram transmitidas pelo famigerado aplicativo WhatsApp.
Outra constatação relevante feita pelo relatório de segurança digital no Brasil promovido pela empresa foi que os principais temas abordados pelos produtores de notícias falsas são saúde (41%), política (38%) e celebridades (18%). A referida pesquisa chegou a prever outros dois temas que poderiam ser potenciais foco de Fake News, que eram a copa do mundo e as eleições daquele ano.
O relatório da Startup também explica que os “cibercriminosos”, propositalmente, produzem um texto apelativo e sensacionalista com a intenção de gerar uma reação no leitor que o leve ao compartilhamento da informação, seja com a intenção de defende-la ou combatela, sem que ele perceba que, com isso, está espalhando aquela informação.
O Instituto de tecnologia de Massachusetts (MIT), universidade privada dos Estados Unidos e mundialmente conceituada, promoveu uma pesquisa acerca da difusão de notícias verdadeiras e falsas online (2018). Os pesquisadores investigaram a propagação de notícias distribuídas na rede social Twitter de 2006 a 2017. A coleta de dados deu conta de aproximadamente 3 milhões pessoas acessando e compartilhando 126.000 cascatas de notícias (modelo de compartilhamento de informação transmídia cujo resultado é um alto fluxo de determinado conteúdo por fontes diversas), mais de 4,5 milhões de vezes.
A classificação das notícias como verdadeiras ou falsas se deu usando seis diferentes fontes de verificação, organizadas e independentes, que apresentaram conformidade de 95% a 98% na classificação das informações. A conclusão da pesquisa foi de que a informação falsa se dissemina significativamente mais rápida, mais profunda e com mais amplitude que as informações verdadeiras. Considerando as variáveis, as notícias falsas eram de 70% maior probabilidade de ser “retuitadas” (expressão utilizada para recompartilhado no Twitter) do que a verdade.
Um fato curioso revelado pela pesquisa foi que, ao contrário de grande parte da opinião pública, os robôs aceleram o envio tanto de informações verdadeiras quanto falsas e na mesma velocidade, comprovando que os humanos é que são os maiores responsáveis pela grande propagação de notícias falsas.
4.2 Legislação Brasileira Atual Sobre Fake News
No âmbito jurídico, importa destacar que o mero compartilhamento de notícias falsas ainda não é tipificado como crime no ordenamento jurídico brasileiro atual. Entrementes, ainda que não haja previsão legal específica, a promoção de Fake News pode configurar crime de difamação, injúria ou calúnia, se a informação transmitida ofender a honra de alguém, nos termos da legislação penal vigente. Já na esfera cível, pode ocasionar o dever de reparação, reconhecendo-se o dano moral e/ou material quando lesionar a imagem ou gerar efetivo prejuízo financeiro à vítima da informação irreal.
O Código Eleitoral em seu artigo 325 também criminaliza a imputação de fato que ofenda a reputação de alguém durante a propaganda eleitoral, podendo gerar até mesmo a anulação do pleito. Já a lei do Marco civil da internet, no art.19, trata da responsabilidade dos provedores que não responderão por conteúdo de terceiros, mas na esfera civil, quando descumprirem ordem judicial para retirada de conteúdo, serão penalizados.
De acordo com Tofolli (2020,n.p.), o STF tem se ocupado com a construção da jurisprudência em favor da liberdade de expressão, a exemplo da declaração de inconstitucionalidade da antiga Lei de Imprensa (ADPF 130 em 6/11/2009); afirmação da constitucionalidade das manifestações pró-legalização da maconha(ADPF187 em 29/5/14), em respeito ao direito à livre expressão de pensamento; dispensa do diploma para o exercício do jornalismo profissional, para assegurar o pleno exercício das liberdades de expressão e de informação (RE 511.961 em13/11/09), entre outros julgados.
A disseminação de notícias falsas retomou destaque no cenário nacional de tal forma que levou o poder legislativo a tentar produzir normas regulamentadoras acerca do assunto. O caso mais polêmico relacionado a Fake News no Brasil encontra-se em trâmite no Supremo Tribunal Federal. Trata-se do inquérito nº 4781/2019, chamado de inquérito da Fake News, conduzido em sigilo pelo Suprema Corte sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes e instaurado por Dias Tofolli, que expediu mandados de busca e apreensão para cumprimento pela Polícia Federal. Segundo reportagem da BBC News Brasil (2020), no dia 27/05/2020 foram cumpridos 29 mandados em cinco estados brasileiros, a saber, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e também no Distrito Federal, contra pessoas que suspostamente estariam envolvidas em ofensas e ameaças contra ministros do STF e seus familiares.
Entre os envolvidos na investigação, existem empresários, ativistas, bloqueios, parlamentares e até mesmo o ministro da educação ato tempo em exercício, o economista Abraham Weintraub, que foi chamado para prestar esclarecimentos. O inquérito polêmico acabou gerando a prisão de alguns dos indiciados que hoje respondem em liberdade ou em prisão domiciliar.
4.3 Análise Do Texto Do Projeto De Lei 2360/2020
Já foi aprovado pelo Senado neste ano o Projeto de Lei 2.630/2020, com o título “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”, cujo o objetivo é estabelecer normas relacionadas à transparência na utilização de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, determinando a responsabilidade dos provedores no combate à informações falsas, buscando o aumento da transparência, especialmente em relação a conteúdos pagos/patrocinados e trazendo determinações sobre como deve atuar o poder público nestas circunstâncias e quais as penalidades aplicáveis. O texto da popularmente conhecida como Lei das Fake News aguarda sua aprovação pela Câmara dos Deputados e neste trabalho serão analisados os seus principais pontos relacionados ao texto constitucional e a existência (ou não) de harmonia entre ambos. Passaremos a tratar dos principais pontos do projeto de lei relacionados com o texto constitucional e as garantias fundamentais relacionadas à liberdade de expressão.
O § 1º do artigo 1º da lei limita a sua aplicação aos provedores de redes sociais e de serviços de mensagem privada que ofertem serviços ao público brasileiro que tiverem mais de 2.000.000 (dois milhões) de usuários registrados. Para os demais, ela servirá de parâmetro, mesmo aos provedores de redes sociais e de serviços de mensagem privada sediados no exterior, conforme discriminado no § 2º, quando oferecerem serviço aos brasileiros ou que ao menos um dos integrantes do grupo econômico tenha estabelecimento no Brasil.
O Artigo 2º deixa claro que esta lei deve respeitar e considerar as garantias previstas na lei das eleições, Código de Defesa do Consumidor, Marco Civil da Internet e Lei Geral de Proteção de Dados, já em vigência, além de se pautar nos princípios constitucionais colacionados em seu artigo 3º.
Observa-se que primeiro o texto traz a defesa da liberdade de expressão e de imprensa, pontos estes bastantes defendidos pelos opositores do projeto para que se resguardassem tais direitos fundamentais relacionados à comunicação. Em seguida, aparece a garantia dos direitos de personalidade, dignidade, honra e privacidade do indivíduo, fonte dos principais conflitos normativos com a liberdade constitucional de expressar-se. Outro ponto crítico eram as discussões acerca da formação de opinião política, o que também aprece como princípio basilar do projeto de lei, portanto, por ela assegurado, desde que não se choque com as demais garantias.
4.3.1 Moderação de conteúdo
Houve grande preocupação quando da produção do projeto de lei acerca do risco de controle excessivo de conteúdo veiculado nos meios sociais. Para este ponto, o projeto de lei utilizou a palavra moderação. Destaque-se o artigo 4º do projeto que traz de forma clara e expressa os seus objetivos.
É essencial comentar sobre a preocupação reiterada da defesa do estado democrático, a vedação à censura (também garantida constitucionalmente), mas principalmente a busca por maior transparência das práticas de moderação de conteúdos postados em redes sociais, com a garantia do contraditório, da ampla defesa a fim de impedir o bloqueio injustificado pelos provedores de páginas e a adoção de mecanismos e ferramentas pelos provedores de informação sobre conteúdos impulsionados e publicitários disponibilizados para o usuário. O
projeto de lei ratifica, ainda, a proteção dada aos consumidores prevista no Código de Defesa do Consumidor, portanto, reconhecendo também de forma expressa a sua hipossuficiência.
O artigo 5º é de extrema importância, pois traz a definição de termos utilizados no texto da lei, destacando-se o inciso V que define conteúdo como sendo “dados ou informações, processados ou não, contidos em qualquer meio, independente da forma de distribuição, publicação ou transmissão utilizada pela internet” (BRASIL, online). É notória a preocupação do Legislador em impelir o que se denomina de “comportamento inautêntico” (BRASIL, online) – conceito não expresso no projeto, mas entendido como um comportamento manipulado ou com intenção de manipulação – e em alcançar a máxima transparência sobre conteúdos pagos para assegurar a veracidade das informações e a possível responsabilização, caso se faça necessário, daquele que veicula conteúdo de caráter ofensivo ou não verídico.
O parágrafo único do artigo 4º informa que está excluída da aplicação da futura lei os provedores de redes sociais na internet cujo conteúdo constitua empresas jornalísticas, nos termos do art. 222 da Constituição Federal. No que tange especificamente à fonte jornalística, o texto constitucional é bastante claro em seu inciso XIV, ao salvaguardar o direito do jornalista de não quebrar o sigilo da fonte.
Isto porque a mídia tem o dever social de agir em favor da coletividade, pesquisando de forma ampla os fatos e eventos cujas consequências repercutirão diretamente no meio social, garantindo o acesso da coletividade à informação, por isso é que também surgem como concepção basilar assegurada no projeto de lei a garantia da confiabilidade e da integridade dos sistemas informacionais e promoção do acesso ao conhecimento na condução dos assuntos de interesse público, em seu artigo 3º, incisos V e VI.
O inciso XIV do artigo 222 da Constituição foi objeto de discussão emblemática nos autos da Reclamação nº 19.464 apresentada pela Associação Nacional dos Jornalistas ao STF diante da decisão do juiz da 4ª vara federal da subseção judiciária de São José do Rio Preto – SP, nos autos do Processo judicial nº 0007029-14.2011.4.03.6106, e mantida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que autorizou a quebra de sigilo telefônico de um jornalista e do jornal onde ele trabalhava, a pedido do Ministério Público Federal, após divulgação de informações de operação sigilosa promovida pela Polícia Federal.
Segundo a ANJ, a decisão violava a determinação do Supremo quando do reconhecimento da inconstitucionalidade da lei da imprensa no julgamento da ADPF 130, que permitia um controle pelo Estado mais rígido do conteúdo jornalístico produzido, o que não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988. As reportagens apresentavam trechos de conversas telefônicas interceptadas com ordem judicial prolatada em processo que tramitava em segredo de justiça para investigar um suposto esquema de corrupção na Delegacia do Trabalho do município, publicadas em maio de 2011 (BRASIL,2015).
O então presidente do STF, Ricardo Lewandowiski, determinou a suspensão da decisão ora questionada, nos seguintes termos: “Não há, a princípio, nenhum prejuízo na suspensão da decisão judicial ora combatida; ao revés, estar-se-á resguardando uma das mais importantes garantias constitucionais, a liberdade de imprensa, e reflexamente, a própria democracia” (BRASIL,2015).
Sob a prerrogativa de proteger a liberdade de expressão e o acesso à informação, fomentando o livre fluxo de ideias na internet, o projeto determina a identificação dos conteúdos impulsionados e publicitários cuja distribuição seja realizada mediante pagamento e traz como exceção a tais restrições as manifestações artísticas, intelectuais ou de conteúdo satírico, religioso, político, ficcional, literário, ou qualquer outra forma de manifestação cultural enquadrada, nos termos dos artigos. 5º, IX, e 220, §1º, da Constituição Federal. O § 2º do artigo também estabelece que os conteúdos impulsionados e publicitários devem ser identificados, mesmo quando encaminhados, compartilhados ou repassados.
4.3.2 Serviços de mensagens privadas e envio em massa
Nos serviços de mensagem privada, a lei trouxe determinações específicas, pois deverão projetar plataformas que garantam a natureza interpessoal de seu serviço, limitar o número de encaminhamentos da mesma mensagem a usuários e grupos para dificultar o compartilhamento de notícias falsas e encontrar os seus percussores. Também determina a estipulação de um número máximo de membros de um grupo a fim de impor obstáculos para a reprodução massiva de notícias falsas. Neste ponto, há que se observar que tal limitação pode macular o direito constitucional fundamental à livre associação, pois é próprio do ser humano a busca por cooperação para fins comuns, quer seja no meio real ou virtual. Além disso, analisando de forma prática, se já estão estabelecidos mecanismos de controle de encaminhamento de conteúdo, a quantidade de membros de um grupo não fará efetiva diferença na propagação de Fake News.
Restou estabelecido, ainda, o desenvolvimento de um mecanismo para verificação de consentimento prévio do usuário para inclusão em grupos, listas ou mecanismos de encaminhamento múltiplo de mensagens.
O artigo 10 determina que os provedores devem guardar registros das mensagens veiculadas em massa por 3 meses, resguardando-se a privacidade dos usuários. O § 1º do referido artigo define como envio em massa o envio de uma mesma mensagem por mais de 5 usuários em um intervalo de até 15 dias para grupos de conversa, listas de transmissão ou mecanismos similares de agrupamento de múltiplos destinatários, com indicação dos usuários que o fizeram com data, horário do envio e quantidade total dos usuários que receberam. Mas, conforme o § 3º, o acesso aos referidos dados somente se dará mediante ordem judicial para investigação e instrução processual criminal por compartilhamento de conteúdo ilícito, respeitando os preceitos do artigo 7º do Marco Civil da Internet.
A obrigação de guarda disposta neste artigo não se aplica as mensagens de quantitativo total inferior a mil usuários, devendo seus registros serem destruídos, não deixando de observar o que determina o artigo 11 da Lei geral de Proteção de Dados.
4.3.3 Cadastro nas redes sociais
Os provedores de redes sociais e serviços de mensagens devem vedar o funcionamento de contas reconhecidas como inautênticas, automatizadas e não identificadas e identificar os conteúdos impulsionados e publicizados de forma paga. Por conta identificada tem-se “conta cujo titular tenha sido plenamente identificado pelo provedor de aplicação, mediante confirmação dos dados por ele informados previamente” (artigo 5º, inciso I, BRASIL, online); Por conta autêntica tem-se “conta criada ou usada com o propósito de assumir ou simular identidade de terceiros para enganar o público, ressalvados o direito ao uso de nome social e à pseudonímia nos termos desta Lei, bem como o explícito ânimo humorístico ou de paródia;” (artigo 5º, inciso I, BRASIL, online); e por conta automatizada, tem-se “conta preponderantemente gerida por qualquer programa de computador ou tecnologia para simular ou substituir atividades humanas na distribuição de conteúdo em provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada” (artigo 5º, inciso IV, BRASIL, online). Com isso, pretende o Legislador inibir a impunidade nas redes sociais, uma vez que deve ser facilmente identificado e localizados os promotores de conteúdo.
Outro ponto destacável do artigo seria o seu § 4º que diz que os provedores devem adotar medidas e técnicas para identificação de contas com movimentação incompatível com a capacidade humana, por acreditar-se que os computadores são os maiores propagadores de notícias falsas, o que não foi comprovado, conforme pesquisa anteriormente citada.
Obrigatoriamente, os usuários deverão efetuar um cadastro para utilização de contas, o que já existe, e no caso das contas vinculadas a um número de telefone, a existência desta estará diretamente vinculada à existência daquele, podendo vincular-se a um número limite de contas a ser estabelecido, resguardando o respeito à proteção de dados pessoais.
Os provedores de redes sociais, segundo o artigo 13, § 6º, devem facilitar o compartilhamento de dados com instituições de pesquisa incluindo dados segregados, respeitando a proteção de dados pessoais. O texto do projeto não traz qualquer explicação sobre o que seriam os dados segregados, o que pode ocasionar problemas de interpretação posteriores. Neste sentido, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, por meio da Organização Panamericana de saúde (2020):
O termo dados desagregados se refere à separação das informações coletadas em unidades menores para revelar tendências e padrões subjacentes. Os dados compilados podem vir de diversas fontes (setores público e privado e organizações nacionais e internacionais) e ter diversas variáveis, ou “dimensões”. Para melhor entender uma situação, os dados são agrupados por dimensão, como idade, sexo, área geográfica, escolaridade, etnia ou outras variáveis socioeconômicas.
Ademais, cumpre apresentar a fundamentação apresentada por Tofolli (2020, n.p.) ao externar sua preocupação com a facilidade ao acesso de dados pessoas dos usuários, em geral:
A desinformação é potencializada pela coleta e pelo uso desenfreado de dados pessoais dos usuários da internet, prática que também tem preocupado governos democráticos no mundo inteiro. Esses dados alimentam os algoritmos de aprendizado de máquinas, permitindo que anúncios e notícias sejam fabricados e direcionados especificamente para determinado perfil de usuário, a partir da compreensão dos seus hábitos, preferências, interesses e orientação ideológica (TOFOLLI,2020, n.p.)
Desta feita, faz-se necessário que o projeto apresente maiores esclarecimentos sobre as possibilidades de uso destes dados desagregados que podem até mesmo incluir informações como geolocalização do usuário sem qualquer comunicação a este, já que a lei permitiria tal acesso, o que pode ferir garantias fundamentais previstas no artigo 5º da Constituição Federal acerca da intimidade e vida privada dos indivíduos.
4.3.4 Modelo de corregulação entre Estado, empresas e sociedade civil
Interessante observar que o texto fala em responsabilidade compartilhada pela preservação de uma esfera pública livre, plural, diversa e democrática, extraindo da esfera do Estado a obrigação para com a preservação do estado democrático e estendendo este dever às demais esferas sociais, quer seja pública ou particular.
Conforme assevera Farinho (2020, n.p.) ”Uma forma moderna de lidar com a crescente incerteza do ponto de vista regulatório encontra-se no instituto da autorregulação regulada”, que basicamente busca a promoção de uma regulação interna, pela própria empresa e uma regulação externa, promovida pelo Estado, onde “a autorregulação regulada consegue “induzir” o setor privado a contribuir para o cumprimento de tarefas públicas (FARINHO,2020, n.p.), o que estaria de pleno acordo com a disposição constitucional, já que existe a previsão de liberdade de iniciativa e associação empresarial, o modelo que se coaduna com o papel indutor do Estado regulador da atividade econômica, consignado no art.
174 da Constituição de 1988 (FARINHO,2020, n.p.), o que garante, obviamente, a constitucionalidade de tal possibilidade.
O projeto de lei em análise se mostra inovador no que concerne às responsabilidades jurídicas e sociais com o seu devido cumprimento, ao buscar sua eficácia de maneira corporativista, interligando os envolvidos com a sua matéria para que, além de beneficiários de suas determinações, também sejam seus colaboradores.
Assim, tem-se uma conclusão positiva acerca do projeto de lei nº 2360/2020, intitulado lei das Fake News, uma vez que esta busca respeitar de forma expressa a liberdade de expressão assegurada no estado democrático de direito, salvaguardando os produtores de conteúdo jornalístico e também assegurando a transparência no compartilhamento de dados e daqueles que as compartilham. Porém, há que se fazer pequenos ajustes a fim de assegurar o respeito integral das garantias fundamentais trazidas no texto constitucional, excluindo a limitação de componentes de grupos e trazendo maiores esclarecimentos acerca da utilização de dados desagregados.
5. CONCLUSÃO
Atualmente, fala-se com frequência, e veemência, em democracia e estado de direito, intentando que a dinâmica destas concepções apresente resultados concretos no meio social, sendo notória a relação íntima entre ambos, visto que a primeira reverbera o segundo e que Estados que são governados dentro do modelo democrático se submetem, consequentemente, ao Direito como fundamento precípuo de suas ações, estando intimamente relacionado aos conceitos de liberdade e igualdade que permitem ao povo que aquela sociedade onde se encontram inseridos reflita a sua vontade, tanto de maiorias quanto de minorias, na medida do que for possível no mundo concreto.
O Estado Democrático de Direito brasileiro está expresso no caput do artigo 1º da Constituição que consagra a soberania popular e legitima o povo para eleição dos políticos representantes de seus interesses, assegurando a participação livre e permanente do corpo social. Curioso observar que diante do caráter garantidor da democracia, esta não se exime do ônus de assegurar a boa disposição entre os seus elementos básicos. Para tanto, é que a Constituição Federal, também chamada de Constituição cidadã, traz em seu corpo tudo aquilo que seria de maior valor ao Estado brasileiro, evidenciado a importância da liberdade de expressão ante o pluralismo de opiniões para assegurar a construção de posicionamentos livres, que permitam à sociedade alcançar melhores condições por meio da discussão clara e consciente.
Assim, em respeito ao estado democrático de direito, à liberdade de expressão e à dignidade da pessoa humana, este trabalho submeteu o projeto de lei nº 2360/2020 a uma análise a fim de assegurar a sua boa disposição com o ordenamento jurídico e legislativo constitucional em vigência, pelo que se concluiu pela sua parcial constitucionalidade, uma vez que o texto do projeto traz garantias expressas essenciais que asseguram a promoção das garantias da Carta Maior, devendo ser melhor observado o texto no que tange ao artigo 9º, II, que determina a limitação de número de membros por grupo, o que fere o direito constitucional à livre associação e o artigo 13, § 6º, que precisa trazer maiores esclarecimentos sobre o uso de dados desagregados, chegando assim a uma constitucionalidade parcial.
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Citas
[1] Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Direito PPGDIR da Universidade Católica de Brasília-UCB.