Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente
RIDCA - Edición Nº4 - Derecho a la Salud
Martín Sabadini. Director
20 de diciembre de 2023
Evolução histórica do conceito de pessoa com deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão.
Evolución histórica del concepto de persona con discapacidad y la Ley de Inclusión brasileña
Autoras. Marcela Mª Furst Signori Prado y Kelly Cristina Assunção Colares. Brasil
Marcela Mª Furst Signori Prado[1]
Kelly Cristina Assunção Colares [2]
INTRODUÇÃO
Em decorrência da influência dos inúmeros tratados e pactos internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorreram transformações no ordenamento jurídico brasileiro ao longo das décadas, de modo a promover, proteger e assegurar os direitos das pessoas com deficiência.
Dente eles, destacamos a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 13 de dezembro de 2006, ratificada pelo Brasil em 30 de março de 2007. Foi o primeiro tratado internacional de direitos humanos a ser recepcionado pela Constituição Federal com status de Emenda Constitucional, sendo incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro na forma do Decreto Legislativo nº 186 de 2008, posteriormente ratificada e promulgada pelo Poder Executivo através do Decreto Presidencial nº 6.949/2009.
A Convenção apresentou a atual concepção de direitos humanos sobre deficiência e sobre pessoa com deficiência, que influenciou comportamentos e vinculou a aplicação de todo o sistema jurídico infraconstitucional, como é o caso da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência de 2015, amparada na interpretação constitucional de que a pessoa com deficiência é detentora de direitos.
DESENVOLVIMENTO
A professora Heloísa Helena Barbosa, afirma na apresentação da obra “Estatuto da Pessoa com Deficiência” – comentários à Lei 13.146/2015 coordenados por Guilherme Magalhães e Lívia Pitelli, que a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, interferiu de modo sensível a um só tempo, em diversos institutos jurídicos essenciais para nosso ordenamento, como a capacidade civil e a curatela.
A partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a inclusão das pessoas em situação de deficiência passa por uma transformação, não só estrutural como funcional, deixando de ser uma preocupação individual para ser uma preocupação coletiva, tornando-se um objetivo da sociedade como um todo. Nesse sentido, o legislador evita termos que reforcem a exclusão e segregação, tais como portadores de deficiência ou portadores de necessidades especiais.
Vejam que o teor do Art. 1º da referida lei já deixa claro sua proposta:
“É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.”
Com a evolução dos direitos humanos, intensificou-se a proteção da pessoa, visando sua autonomia e seu livre desenvolvimento em todos os aspectos de sua vida, a partir do princípio da dignidade humana. Discriminações e hierarquizações fundadas em gênero, saúde ou opção política, religiosa ou social não encontram mais espaço.
E a partir desse modelo social, as noções de deficiência e incapacidade não são mais passíveis de confusão, constituindo um notável avanço em relação ao direito anterior, quando as pessoas com deficiência psicossocial e com deficiência intelectual foram excluídas de uma maior participação na vida civil.
No passado, a deficiência era tratada como como uma doença, um desvio no padrão de ‘normalidade’, ao passo que no modelo social, estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Decreto nº 186/2008, passam a ser consideradas as características do indivíduo, em interação com as barreiras sociais e atitudinais impostas pela organização da sociedade.
A elaboração da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência se insere em um vasto projeto de promoção de direitos humanos em um contexto mundial e brasileiro, tendo o legislador optado pela elaboração de um microssistema jurídico.
Por esse motivo, o Estatuto da Pessoa com deficiência – Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 é uma lei protetiva que abarca os mais diversos temas relativos à tutela dos direitos processuais e materiais das pessoas com deficiência. Em seus 127 artigos, reconhece os direitos desse grupo de pessoas em patamar constitucional como direitos fundamentais e visa assegurá-los, através da enumeração de direitos, que disciplinados em um estatuto legal, adquirem força cogente e trazem segurança jurídica, conduzindo à paz social. Visa igualmente promover os direitos das pessoas com deficiência por meio da promoção de políticas públicas que tornem efetivos esses direitos, muitas vezes por medidas afirmativas.
O Estatuto, apresenta no caput de seu art. 2º, a definição de pessoa com deficiência a saber:
“Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”
Observa-se que o art. 2º repete o que já havia sido disposto na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, onde é desconsiderado a ideia de impedimento permanente, pelo impedimento de longo prazo. Logo, caracterização da deficiência não reside isoladamente na pessoa que a possui, tampouco em um suposto defeito físico ou mental que lhe seja inerente, mas resulta da interação entre seu impedimento e as barreiras do meio externo.
Há uma importante mudança de paradigma, que durante muito tempo focou na visão negativa da pessoa com deficiência, para uma abordagem da deficiência como uma situação em que se conjugam os impedimentos que afligem a pessoa com deficiência com as barreiras existentes no meio, que potencializam o impedimento, transformando-o em deficiência.
O parágrafo 1º do art. 2º e seus incisos tratam da avaliação da deficiência, e informa que quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:
“I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; II – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; III – a limitação no desempenho de atividades; e IV – a restrição de participação. Observa-se que a avaliação biopsicossocial leva em conta não apenas aspectos físicos, médicos, mas também comportamentais, permitindo o espectro da avaliação para além dos aspectos puramente médicos. Essa proposta de avaliação visa um atendimento mais humanizado e eficiente, por isso, mais atento à condição de desvantagem da pessoa em situação de deficiência.”
Há um Título inteiro, o Título III, que abarca os artigos 53 a 62, tratando da acessibilidade e de regras a serem observadas para a efetividade desse direito, definido no art. 53, como sendo um direito fundamental que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social. Para o jurista Cristiano Chaves, trata-se de um conceito amplo, a abarcar todo e qualquer instrumento capaz de propiciar a inclusão da pessoa com deficiência em igualdade de condições com as demais. É a efetivação do princípio da isonomia, previsto no Art. 5º, caput, da Constituição Federal.
O art. 4º, cristaliza o princípio da igualdade substancial ou material, previsto no art. 5º, caput da nossa Carta Magna, ao definir que toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação. Esse princípio autoriza o tratamento desigual à pessoa com deficiência sempre que necessário, para que sejam suprimidas as diferenças e as barreiras que obstam seu pleno desenvolvimento e sua dignidade seja preservada.
Outro importante e polêmico ponto a ser observado é que o Estatuto da Pessoa com Deficiência modificou profundamente o regime jurídico das incapacidades, alterando diversos dispositivos do Código Civil, entre eles, os artigos 3º e 4º, afim de excluir a doença ou deficiência mental ou intelectual como causa de incapacidade absoluta. Em outras palavras, a deficiência mental ou intelectual não determinará, por si só, qualquer grau de incapacidade. Para o Estatuto, a causa da incapacidade não é em nenhuma hipótese, a deficiência, mas tão somente a impossibilidade de manifestação da vontade.
Nesse sentido, afirma o art. 6º do Estatuto:
“A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I – casar-se e constituir união estável; II – exercer direitos sexuais e reprodutivos; III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.”
Sendo que, o rol de direitos apresentados no art. 6º acima, é meramente exemplificativo e são atos que poderão ser praticados pela pessoa com deficiência em total autonomia e no gozo de sua plena capacidade civil.
De modo que, as limitações experimentadas pelas pessoas com deficiência para a prática de atos negociais, podem ser superadas na medida de suas possibilidades, pela tomada de decisão apoiada, bem como pelo instituto da curatela, presentes nos artigos 84 a 87 do referido Estatuto.
Por outro lado, o regime das incapacidades, antes vigente, acabava por determinar sérios prejuízos à ampla proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, pois não foram raras as vezes que a aplicação do regime de incapacidade sem a devida avaliação do efetivo conteúdo que deveria ser atribuído ao exercício da curatela, tiveram efeito para além da proteção da pessoa, resvalando no cerceamento da livre manifestação de vontade da pessoa com deficiência e impondo graves dificuldades ao exercício de direitos existenciais, como o planejamento familiar.
Importa dizer que o instituto da curatela rompe com a tradição da interdição, tradicionalmente atrelada à falta de discernimento para a prática pessoal dos atos da vida civil.
A novidade apresentada no art. 84 é o instituto da tomada de decisão apoiada, que foi posteriormente detalhado no art. 1.783-A do Código Civil, no qual a pessoa com deficiência, no exercício de sua plena capacidade jurídica, solicita apoio, de pelo menos duas pessoas para a prática de algum ato da vida civil. A função jurídica desse novo instituto é a instrumentalização de medidas para a superação de barreiras de informação, comunicação e, eventualmente, tecnológicas.
A ideia de proteção da pessoa que se enquadrava em qualquer das causas de incapacidade acabava por ser usada pela família, algumas vezes de boa-fé, porém com ignorância profunda acerca das verdadeiras limitações da pessoa com deficiência, com cerceamento total da vontade da pessoa com deficiência, como se ela necessitasse ser protegida dela mesma.
O art. 25 do referido Estatuto, ao falar da remoção de barreiras físicas, arquitetônicas e urbanísticas, trata da acessibilidade, direito fundamental da pessoa com deficiência, previsto no art. 53, que garante o direito a uma vida de forma independente, o exercício da cidadania e a participação social, como veículo de inclusão, uma vez que a acessibilidade é definida na NBR 9050/2004, como possibilidade e condição de alcance, percepção e entendimento para a utilização com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário, equipamento urbano e elementos.
Trouxemos até aqui, os aspectos mais exemplificativos das transformações no ordenamento jurídico brasileiro implementadas pela entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência ou Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, cuja efetiva implementação, tem dependido da sua aplicação pelo Poder Judiciário Brasileiro, cuja confiança e adaptação aos paradigmas impostos pelo Estatuto é atualmente a maior dificuldade a ser ultrapassada na concretização do principio constitucional da inclusão.
CONCLUSÃO
Toda a preocupação dos organismos internacionais e do Estado brasileiro com os direitos e o bem estar das pessoas em situação de deficiência, tem uma razão de ser: a necessidade de incluir, tendo em vista, o reconhecimento da situação de vulnerabilidade desse grupo de indivíduos e há quem os considere hipervulneráveis, portanto merecedores de uma proteção jurídica ainda mais efetiva.
Em uma perspectiva em que a vulnerabilidade é condição inerente às pessoas com deficiência, alguns autores defendem que os adultos com deficiência intelectual possuem vulnerabilidade acrescida, pois, de forma recorrente na sociedade, a autonomia de tais pessoas é afrontada, especialmente no campo da saúde, na medida em que as decisões sobre sua vida são realizadas mediante utilização exagerada do recurso da tomada de decisão substituta, como é o caso da curatela, deixando de ofertar-lhes suportes para tomada de decisão apoiada, que lhes permitam compreender informações complexas e conduzir a própria vida. Com isso, tais pessoas acabam por tornarem-se socialmente invisíveis.
Diante dessa condição de vulnerabilidade acrescida de adultos com deficiência intelectual, a principal resposta ética da sociedade deve ser a promoção da sua autonomia pessoal, visto que a vulnerabilidade possui íntima conexão com as relações que travamos com outras pessoas e varia de acordo com o ambiente em que estamos inseridos.
Na acertada concepção de Geraldo Nogueira, citado em sua obra pelo saudoso jurista Cristiano Chaves de Farias, preceitua que a noção de que a pessoa, antes de sua deficiência, é o principal foco a ser observado e valorizado, assim como sua real capacidade de ser o agente ativo de suas escolhas, decisões e determinações sobre sua prórpia vida. Portanto, pessoa com deficiência, é, antes de mais nada uma pessoa com uma história de vida que lhe confere a realidade de possuir uma deficiência, alèm de outras experiências de vida.
Portanto, para incluir é fundamental promover a proteção de cada pessoa com deficiência, de acordo com as suas necessidades concretas. De modo que, uma das formas de incluir é ter toda uma série de cuidados para que não haja barreiras que impeçam a sua inserção na sociedade em todos os aspectos. urbanísticas e arquitetônicas. Somente com esses cuidados, pode-se dar efetividade ao acesso aos bens e serviços a todas as pessoas, independentemente de sua condição, com deficiência, ou não.
No Brasil, ainda há muito o que avançar nos mecanismos de inclusão social como modo de efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, as quais, muito embora sejam pessoas como as demais e reconhecidas por possuírem direitos como quaisquer outras, seja pela legislação local, seja pelos vários documentos internacionais, há uma necessidade real e histórica, portanto, urgente, de tornar efetivos esses direitos.
A inclusão social pode ser compreendida como a capacidade de a sociedade mudar para receber, entender, respeitar e atender às necessidades de todos que dela fazem parte. É a sociedade que deve adaptar-se e não a pessoa à sociedade.
A inclusão pressupõe a participação de todos, por todos, para todos e com todos. O objetivo maior é a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, que conviva com a diversidade de forma natural, que confira autonomia, independência e empoderamento a todos seus membros. Quem limita o outro não é a deficiência, quem limita o outro é a sociedade.
Nessa perspectiva, não há inclusão se não houver transformação e não há inclusão verdadeira e plena se a transformação não for contínua, consciente e concreta. Incluir é respeitar o outro, é um eterno transformar, é o respeito ao modo e tempo da pessoa com deficiência interagir com o mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FARIAS, Cristiano Chaves de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; Estatuto da Pessoa com Deficiência comentada artigo por artigo.4. ed. Rev. Ampl. E atual. Salvador: Juspodivm.2021.
FERREIRA.Vandir da Silva; OLIVEIRA Lilia Novais de; Publicado na Revista Reviva, Ano 4 – 2007, PRODIDE.
https://www.mpgo.mp.br/portalweb/hp/41/docs/comentarios_a_convencao_sobre_os_direitos_das_pessoas_com_deficiencia.pdf. Acesso em 05 de dezembro de 2023.
MARTINS, Guilherme Magalhães; HOUAISS, ZAMORIAN, Lívia PitellI (Coordenadores),Estatuto das Pessoas com Deficiência, comentários à Lei 13.146/2015, Indaiatuba.Editora Foco.2019
https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 04 de dezembro de 2023.
https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia. Acesso em 04 de dezembro de 2023.
https://site.mppr.mp.br/idoso-pcd/Pagina/CONCEITOS-DE-DEFICIENCIA.Centro Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos da Pessoa co Deficiência. Acesso em 05 de dezembro de 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Lei Brasileira de Inclusão. Acesso em 05 de dezembro de 2023.
Citas
[1] Advogada especialista em Direito de Família. Conselheira Seccional da OAB/DF. Presidente da Comissão de Direito Sistêmico da OAB/DF. Membro Consultora da Comissão Especial de Direito de Família do Conselho Federal da OAB. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM/DF. Conselheira Fiscal da Associação Brasileira de Mulheres em Carreiras Jurídicas – ABMCJ/DF. Membro do Instituto dos Advogados do Distrito Federal/IADF.
[2] Advogada especialista em Direito de Família. Conselheira Seccional da OAB/DF. Presidente da Comissão de Direito Sistêmico da OAB/DF. Membro Consultora da Comissão Especial de Direito de Família do Conselho Federal da OAB. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM/DF. Conselheira Fiscal da Associação Brasileira de Mulheres em Carreiras Jurídicas – ABMCJ/DF. Membro do Instituto dos Advogados do Distrito Federal/IADF.